O conto que transcrevo foi publicado na "Revista Literatas - Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona", edição n.º 59 de Junho 2013. A revista é um baluarte um baluarte de cultura africana e universal, impulsionada e dirigida pelo Poeta Amosse Mucavele a quem saúdo com todo o amor, gratíssima pelo convite e pela honra. |
Em África com o Negro Linga
Vivi em Moçambique dos doze aos vinte anos. Cheguei em
1963 e parti em 1971. Depois disso, voltei várias vezes à terra que ainda hoje
amo profundamente. Em sonhos. Resolvi então, em vez de um conto, ou outra
narrativa mais tradicional, escolher um deles, entre tantos e tantos outros de
um diário que mantenho com intermitências há bastante tempo. Porquê este?
Porque a sua carga onírica ainda hoje me comove e perturba. Porque a força do
que senti e vivi e que, ao acordar fixei por palavras, continua bastante
misteriosa e sedutora. Podemos falar de arquétipos, podemos evocar união de
opostos, equacionar a guerra como o conflito latente que visita todas as nossas
almas e coração de viventes. Mas mesmo assim, acho que há mais do que isso,
neste meu mágico encontro com o Negro Linga. Afinal, e no sonho, a que é sempre
uma antecâmara de realidades, tivemos uma filha. Que fruto virá a ser esse? Entretanto,
continuo e continuarei sempre a sonhar com Moçambique.
Noite de 20 para 21 de Março de 1998
Regresso a África. Viajo
entre duas secções do Tempo. No passado e no presente. Estou no mato, é noite,
e estou a viver um episódio de guerra. Há sombras. Há homens negros em
camuflado. Vai começar um tiroteio. Estamos no Norte de Moçambique.
Estou com um negro. Ele conhece os caminhos. Ele sabe por onde devemos fugir. Ele leva-me consigo. Corremos, embrenhamo-nos na selva e passamos uma noite inteira, os dois. Escondidos.
Agora, e em tempos de paz, estou a recordar aquela noite no mesmo lugar onde tudo aconteceu, e digo à pessoa que está comigo:
Estou com um negro. Ele conhece os caminhos. Ele sabe por onde devemos fugir. Ele leva-me consigo. Corremos, embrenhamo-nos na selva e passamos uma noite inteira, os dois. Escondidos.
Agora, e em tempos de paz, estou a recordar aquela noite no mesmo lugar onde tudo aconteceu, e digo à pessoa que está comigo:
“Entendes porque fiquei com a filha que
tive dele?”
E de novo, encontro-me junto
do negro, que está também a contar o que se passou há tantos anos, aos muitos que
o rodeiam. E esta transposição de momentos parece-me perfeitamente natural,
porque é como se o tempo fosse um cristal de muitas faces, as quais podemos,
nesta circunstância tão particular, cruzar livremente, como quem desfolha o
livro de todos os instantes.
O negro diz:
“Vocês gastam muita energia a fugir. É preciso simplificar. Traçar as metas”.
E demonstra, desenhando no pó do chão, o semicírculo perfeito que efectua, no mato, para se esconder. E demonstra, também, a série de curvas aleatórias que outros percorrem, sem lógica porque meramente instigados pelo medo, e que não os leva a lado algum. Está deitado no chão, estendido e apoiado de lado, sobre os cotovelos. Eu também estou deitada na mesma posição, mas ao contrário. As minhas pernas estendem-se ao longo das suas costas. Afago-o, numa carícia que é, também, um gesto de cumplicidade. Ele retrai-se. Percebo que não posso expressar o meu amor por ele. É como se ele fosse um princípio activo masculino em estado puro: simplesmente, não posso agir assim com ele. E contudo somos íntimos, embora eu não guarde qualquer memória da nossa intimidade.
E então, regressamos ao mato, à noite em que fugimos juntos. Ele diz-me:
“Não percebes, mulher, que nunca me posso perder. Mesmo que morra. Mesmo que o meu corpo fique pulverizado em mil pedaços. Se isso acontecer, serei recolhido, inteiramente, e todos os meus bocados serão entregues ao meu Pai, porque eu sou um Linga.”
E acrescenta:
“Vocês gastam muita energia a fugir. É preciso simplificar. Traçar as metas”.
E demonstra, desenhando no pó do chão, o semicírculo perfeito que efectua, no mato, para se esconder. E demonstra, também, a série de curvas aleatórias que outros percorrem, sem lógica porque meramente instigados pelo medo, e que não os leva a lado algum. Está deitado no chão, estendido e apoiado de lado, sobre os cotovelos. Eu também estou deitada na mesma posição, mas ao contrário. As minhas pernas estendem-se ao longo das suas costas. Afago-o, numa carícia que é, também, um gesto de cumplicidade. Ele retrai-se. Percebo que não posso expressar o meu amor por ele. É como se ele fosse um princípio activo masculino em estado puro: simplesmente, não posso agir assim com ele. E contudo somos íntimos, embora eu não guarde qualquer memória da nossa intimidade.
E então, regressamos ao mato, à noite em que fugimos juntos. Ele diz-me:
“Não percebes, mulher, que nunca me posso perder. Mesmo que morra. Mesmo que o meu corpo fique pulverizado em mil pedaços. Se isso acontecer, serei recolhido, inteiramente, e todos os meus bocados serão entregues ao meu Pai, porque eu sou um Linga.”
E acrescenta:
“Aqui, todos sabem, sempre, onde estou. Aqui, todas as tribos conhecem o
meu Pai, e conhecem-me a mim, porque sou um Linga.”
Eu não sei o que é um Linga, mas não quero parecer ignorante. De modo que faço um comentário, a ver se provoco nele uma reacção que me dê um indicador sobre a sua origem. Vejo umas palavras escritas, em letras grandes. Consigo decifrar a raiz do vocábulo. É SOMALI.
Volto a dizer à pessoa que está comigo:
Eu não sei o que é um Linga, mas não quero parecer ignorante. De modo que faço um comentário, a ver se provoco nele uma reacção que me dê um indicador sobre a sua origem. Vejo umas palavras escritas, em letras grandes. Consigo decifrar a raiz do vocábulo. É SOMALI.
Volto a dizer à pessoa que está comigo:
“Percebes agora porque tinha de ter a filha deste homem? Não podia fazer de
outra maneira.”
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