segunda-feira, novembro 28, 2016

De volta à biografia de António Variações

Está a saber-me tão bem reescrever, acrescentar e preparar a biografia que a editora Bertrand vai relançar em 2017. Agendadas, novas entrevistas com pessoas que também o conheceram e que, na altura da primeira biografia, eu não tive acesso ou conhecimento. Cito: 
«António Variações: “Venho de uma altura em que me chamavam todos os nomes, as pessoas abriam alas para me verem passar e, ou achavam piada, ou massacravam-me com comentários. Sentia-me perfeitamente só, ao ponto de não ter amigos porque se recusavam a estar ao pé de mim. No entanto nunca abdiquei de ser o que sou, e só comecei a ser recompensado por essa atitude quando, há sete ou oito anos atrás houve pessoas que vieram ter comigo e me disseram ter sido eu o ponto de partida para uma estética que eles gostavam mas não eram capazes de assumir. Foi depois de abrir o cabeleireiro no Imaviz, o primeiro misto que existiu em Portugal. Mas é bom, agora, saber que há cada vez mais pessoas a aceitarem-se a si próprias sem estarem condicionadas por fachadas ou puritanismos. […] Há quinze anos que faço virar os púdicos pescoços portugueses. Divido as pessoas, que abriam alas quando eu passava, com a minha maneira de estar na vida. Hoje passo despercebido.” (Monteiro, 1983:36). (em Manuela Gonzaga, António Variações, Entre Braga e Nova Iorque, Lisboa, Ancora, 2006). 
Foto Teresa Couto Pinto 

sábado, novembro 19, 2016

Farewell sweet Poeta

O Poeta chegou a casa. O Poeta está em casa. Tem uma família humana maravilhosa, uma praia inteira para brincar, gaivotas atrás de quem corre em vão, cascas de mexilhões que atira ao ar não sei porquê, e dúzias de outros cães tão felizes quanto ele, que correm pela areia gelada das manhãs do outono escocês com a alegria de quem traz o sol sempre consigo. O meu colo vazio recorda-se do peso dele, da maciez do seu corpo de infante, da inteligência feliz do seu olhar. E de tanta coisa mais. E voltamos a Calais, onde estivemos há quase três semanas, estupefactos de frustração, por não podermos embarcar com ele. As vacinas não tinham ainda cumprido o prazo todo, e o passaporte meio destruído pelos dentes de piranha dos cachorros da sua ninhada, na madrugada da partida, alteraram as regras do jogo.

Mas conseguimos, agora estamos de volta, e de algum modo ele está presente, aqui no nosso quarto de passagem, em Calais. embora tenha ficado lá longe, em PortoBello. Quase três semanas, milhares e milhares de quilómetros uma viagem cheia de imprevistos a sensação é de «Missão Cumprida». Missão quase impossível, que resultou em bem. Querido cachorrinho. Querido bebé que (quase) vimos nascer e para quem conseguimos um futuro.
Farewell sweet Poeta you've reached your realm

Já me perguntaram se ia escrever um livro sobre esta viagem. Já me perguntaram se ia escrever um livro sobre os meus, nossos, cães. E gatos. Nunca considerei essa hipótese, para dizer a verdade. Não são histórias excepcionais. São histórias, todas elas, de amor e de resgate como milhares de outras. Nesta fase da minha vida, tudo começou há seis anos e meio com o Timóteo: 4,5 anos de cão grande, aterrorizado e perdido a subir a calçada do Combro, Lisboa, num verão escaldante.

Hipóteses? Chamar a Câmara era condená-lo à morte certa num canil tristíssimo. Ele era demasiadamente grande e adulto para apaixonar por impulso as pessoas que, por impulso, compram ou aceitam cães. Saltando por cima de muitas peripécias, entre as quais um jipe destruído (por dentro) quando ficou uns vinte minutos lá dentro, numa noite em que, de férias em Aljezur, fomos a um café a alguns quilómetros, e ficámos um bocado a pasmar diante da televisão; ultrapassando o nosso pânico inicial quando percebemos que ele nunca, mas nunca, poderia ficar sozinho porque esse é o único trauma que não ultrapassou, tornámo-nos todos estupidamente felizes juntos.

Mais tarde, viemos a saber que era um Pirinéus. O pelo cresceu, glorioso, e aspirar, limpar a casa, tornou-se uma tarefa mais do que diária. Pensámos em iniciar uma pequena industria caseira de tapetes com os tufos que emergiam de todo o lado, mas desistimos.

Este verão, somaram-se mais animais à matilha, que entretanto e desde há dois anos incluíra uma rafeirota velhinha, meia surda ou demasiado teimosa para ligar ao que dizemos, e um pouco cega, ou demasiado obstinada para olhar para onde não quer. A Maia dos Anjos. Onze anos de cadelinha toda torta, magra de meter dó, e com todos os tiques de quem deu à luz em risco, permanente de vida própria e dos seus bebés. Não estava esterilizada... e escondida os brinquedos e a comida sob o colchão do seu cestinho.
Finalmente a salvo

Pois estávamos muito bem na nossa tranquilidade, com estes dois seres maravilhosos que nos deram e dão tanto que não cabe aqui contabilizar, quando uma espécie de loba branca, com um pedaço de corrente pendurada do pescoço passou a aparecer de manhã no jardim da casa que alugámos numa aldeia alentejana perto do Alqueva. Alimentámo-la - estava pele e osso. Mas também estava grávida, como viemos a descobrir quando desapareceu um ou dois dias e fomos visitá-la na casa onde ficara ao abandono, com um balde de ração que nem os ratos cobiçavam e um pote de água erverdeada para lhe matar a sede. Aliás, tinho dado à  luz cinco cachorrinhos minusculos, um morreu quase de imediato, para os quais, no calor de um Agosto inclemente, ela raspara uma parede para os proteger das temperaturas insustentáveis, Um banco de ferro que queimava só de lhe tocarmos, servia de abrigo...

A primeira ida ao veterinário

Na quinta, com o burro Tonico que é muito territorial
Numa noite de chuva (Alentejo) a minúscula casa onde estamos a viver provisoriamente abrigou todos


On the road. Holanda, um desvio de coração 

Num restaurante perto de Bordéus

A primeira vez que se viu ao espelho, num hotel em Calais (Ibis)

Durante a viagem começou a sobrar cão e a faltar colo... uma almofada resolveu o assunto

Portobello Edinburgo

Meadows, Edinburgo
Veio connosco quando saímos daquela casa para outra. Aliás, saltou para dentro do carro, num desespero a que não fomos indiferentes. Mas depois... que fazer com tantos cães? Ainda por cima, um outro veio ter connosco à quinta onde estamos. Enorme, mas cachorro (oito meses) focinho de Rafeiro Alentejano, corpo de podengo e galgo, uma grande misturada. O Mascarilha, de patas desfeitas... mal conseguia andar. O fogo de artificio enlouquecera-o de medo... acontece todos os anos e não se percebe porque não se hão-de mudar os festejos...

Bom. O Poeta. O mais contemplativo de toda a ninhada. O maior deles todos (não o mais pesado porém). Já andavam todos a brincar cá fora e ele ainda se mantinha teimosamente dentro do buraco que a mãe lhes arranjou, descartando o belo espaço sob as árvores, com uma mesa, panos a servir de toldo, etc., onde os colocámos quando os trouxemos para a quinta. O primeiro a correr para dentro do abrigo ao menor sinal de «perigo» que não existe ali. Já todos brincavam de um lado para o outro, e o Poeta deixava-se estar debaixo da amendoeira no nosso alpendre a seguir com atenção o movimento das folhas sob a brisa quase imperceptível.

Um lar? Foi fácil. Família, mesmo. Conheceram-no no Verão e quiseram-no. A ele ou a outro, tanto fazia. Mas um Poeta... é a companhia ideal para um bebé que vai nascer. Em Porbello, Edinburgo, diante do mar. Foi fácil, para nós? Não. Foi uma missão quase impossível. Mas cumpriu-se.  Teve tantas peripécias que talvez ainda volte à narrativa que acaba, agora à distância, por ser hilariante.

E a transição entre os braços de uns para o colo de outros está a ser tão suave e tão imperceptível, que não vai sentir a nossa falta. Ou quase nada. Ou durante quase tempo nenhum. Aqui, os dias começam com brincadeiras junto do mar. As pessoas adoram cães. Os cães podem entrar em quase todo o lado. O espaço é muito e há sorrisos na cara de quase toda a gente. Amanhã vamos voltar, e vamos felizes. Vai ser muito bom reencontrar o resto da matilha.

Além disso, o frio no Alentejo nunca é tão frio como nesta Europa do Norte.