quarta-feira, abril 27, 2011

Águaaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!!


Tântalo e seu suplício
 Os gritos. Os gritos. «Quero águaaaaaaaaaaaaa». Na rua estreita e íngreme não havia como lhes escapar. Ela gritava, ululava, como se a tivessem a estripar. Havia um homem grande, de avental branco, à porta do restaurante.  O seu rosto não tinha qualquer expressão:
- Não lhe dou mais água nenhuma.
Tentei escapar ao torpedo que vinha direito a mim, bramindo e agitando os braços.
Estremeci. O cão estremeceu. Ela apanhou-nos a descer a rua bem junto à parede, e gritou:
- Queroooooo águaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!
parada à nossa frente, gigantesca e pavorosa, consumida por invisíveis labaredas. Escapei àquela onda de pavor, atravessando a rua em direcção ao homem de avental. Olhei para ele, ele olhou para mim. Abanou a cabeça:
- Não dou mais água nenhuma.
- Chamamos a ambulância? Polícia?
Ela estava a dois passos de nós, com os seus gritos roucos, os braços a esgrimir contra o ar da tarde toda.
- Nã - disse ele, abanando a cabeça e voltando a entrar para o restaurante.
A mulher afastou-se, sempre a gritar o mesmo refrão.
Na escuridão do seu cérebro doente, o holograma da realidade é um pavor sem limites. Com ela, o inferno passou por nós, com um hálito de fogo e indizível sofrimento.
Ela podia estar mergulhada no Tejo que continuaria não ver mais do que sede e chamas.
Por isso gritava com o desespero dos condenados, como quem chama por um deus ausente.
E nós sem podermos valer-lhe.

Autor da imagem: Jeffrey Heft.

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