Um homem que casa seis vezes e manda matar três das
suas mulheres não é digno de figurar na lista? Com efeito, este lamentavelmente
famoso rei de Inglaterra casou seis vezes e mandou matar três das suas
mulheres, nomeadamente Catarina de Aragão, a primeira, Ana Bolena, a segunda, e
a quarta, Catarina Howard. A primeira foi envenenada. As outras duas,
decapitadas. Cruzei-me algumas vezes com este ser, por causa da «minha»
Isabel de Portugal que se envolveria diretamente
num assunto que, nos primeiros anos da década (1530) afectava o mundo católico
e muito particularmente a família real espanhola. A ultrajante questão da
nulidade do casamento que Henrique VIII queria decretar contra a sua esposa
Catarina de Aragão, tia carnal de ambos os imperadores como irmã que era das
suas respectivas mãe.
A questão arrastava-se
oficialmente desde 1528 quando Henrique VIII
começara a pressionar o papa para este lhe conceder o divórcio, mas o problema
começara antes, na Primavera de 1527, quando o rei de Inglaterra começou a
alegar que vinte anos atrás fora praticamente obrigado a casar com infanta
espanhola, viúva do seu irmão, a quem sucedera na herança do trono. Ao mesmo
tempo que continuava a insistir com o santo padre que lhe anulasse urgentemente o seu casamento. Mas Clemente VII
não tinha a menor vontade de se incompatibilizar de novo com Carlos V, que lhe
causava um medo irreprimível. Assim, e tratando os enviados do monarca inglês
com toda a solicitude, Clemente VII invocara a gravidade do negócio para pedir
«paciência e tempo» ao impaciente soberano. A resposta do Santo Padre enfureceu
o rei de Inglaterra, tão «cego» que estava pelos
amores de «uma Ana Bolena» – palavras de Prudêncio de Sandoval – que «perdeu o
juizo e razão de cristão» e «de abismo em abismo, até despenhar-se no mais
profundo», negou a fé católica, «repudiando a rainha dona Catarina sua mulher,
tia do imperador e infanta de Castela que segundo a opiniao de muitos era uma
santa», mas que aos quarenta anos jamais iria produzir o herdeiro
masculino que Henrique VIII tanto desejava. E Ana Bolena, o cerne de todo este
aparato teológico, para quem o lugar de amante real estava demasiado abaixo das
suas perspetivas[i] pressionava-o.
No princípio de 1530, o governo inglês enviou a
França uma embaixada extraordinária, a pedir o apoio de Francisco I à causa de
Henrique VIII. Este, que não queria abertamente afrontar Carlos V prometeu
secretamente apoiar o caso até poder fazê-lo às claras. Mas em Paris, na
Faculdade de Teologia – bem como noutras universidades, nomeadamente em Itália
e na Alemanha –, o assunto tinha sido bem acolhido junto de numerosos teólogos
apesar da oposição tenaz de dois doutores espanhóis, Garay e Moscoso, e do
síndico do Colégio de Teologia da Sorbone, Noel Beda, pelo que a 7 de Junho o
«Grande Assunto» foi novamente debatido em Paris. As discussões culminaram em
distúrbios generalizados e num protesto enérgico dos embaixadores ingleses
junto do rei de França que, furioso, escreveu uma carta ameaçadora à Sorbonne:
qualquer consulta ao papa sobre esta matéria constituiria uma violação aos
direitos e privilégios do rei. A orientação régia foi tão esclarecedora que a 2
de Julho de 1530, por 53 votos contra quarenta e sete, ficou decidido que lei alguma, fosse divina ou natural,
permitia que o papa proclamasse uma dispensa autorizando um homem a casar com a
viúva do seu irmão. Por esta razão, o casamento de Henrique VIII com Catarina
de Aragão era nulo e ilegal.
É sob a pressão deste formidável
jogo de influências, que a 8 de Julho de 1530 Carlos escrevia à imperatriz,
informando-a das últimas manobras do rei de Inglaterra e dos apoios que já
conseguira reunir recorrendo a universidades, teólogos ingleses e letrados.
Juntamente com a sua carta seguia uma breve relação do caso, para que nas
universidades de Aragão, Valência e Catalunha, e junto de teólogos e juristas,
se estudasse a matéria com muita diligência e se colhessem pareceres e votos
assinados[ii] A resposta veio célere, com os teólogos, os canonistas e os moralistas
mais exímios a escreverem «sábias alegações» que levaram à Santa Sé. O padre
dominicano Francisco da Vitoria, um dos mais requisitados pregadores,
demonstrou cabalmente que «casar-se com a mulher do irmão defunto não está
proibido por lei natural; e casar com a viúva do irmão morte sem sucessão, como
no caso dos reis ingleses, nunca esteve proibido no direito divino da lei velha[iii]»
Na verdade, sendo o casamento um sacramento indissolúvel, o divórcio tal como viria a ser
concebido em tempos muito futuros, não era admissível na época de Henrique
VIII. Então, quando um homem queria ver-se livre da sua mulher sem a matar,
tinha de provar que o seu casamento nunca fora válido nem bom, o que acontecia
com assaz facilidade. Brewer cita o caso do duque de Suffolk que por duas vezes
cometeu bigamia e por três vezes se divorciou, e que começou por casar com a
sua tia e acabou por desposar a sua nora. E este caso não era nada excepcional
durante os reinados de Henrique VIII e Eduardo VI. Aliás, a 11 de Março de 1528
Margarida Tudor da Escócia recebera de Roma a sentença de divórcio do seu
casamento com Archibald Douglas, conde de Angus[iv].
[continua…]
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