Tenho amigos que percebem, a fundo, de economia e tenho tido conversas muito esclarecedoras com eles. Por exemplo, a forma como me explicaram a questão dos ratings fez-me soar campainhas. E foi então que, depois de horas de troca de informações, algumas leituras, um filme pelo meio, e uma noite bem dormida, acordei hoje a pensar em
A Selva' de Ferreira de Castro onde, perdidos nos confins da Amazónia, os seringueiros, os tristes que extraiam a borracha, estavam sempre, mas sempre endividados.
O seu ser era hipotecado logo à cabeça: a viagem que os levava ao 'inferno verde' em condições deploráveis, constituía a primeira dívida, a enorme dívida, ao seu contratador. Depois, ao chegarem ao desolado fim de mundo, somavam-lhe as outras, como e na totalidade, o material necessário ao seu oficio, vendido na cantina do «empresário» local. Associado, como é evidente, ao grande magnata borracheiro. Ainda não tinham começado, e já estavam amarrados aos custos das suas ferramentas de trabalho, comida e transporte até ali.
Então, no seu desalento e desgarradora solidão, os seringueiros, em dia de folga, e depois com mais regularidade, recorriam à cachaça: a crédito. Desta forma, quando chegava a hora do pagamento, ficava tudo nas mãos do cantineiro. E a dívida crescia sempre. Até porque os preços dos bens essenciais, por não haver alternativas,eram inflacionados à vontade do credor, o qual, se lhe 'parecesse' que o endividado tinha poucas condições de pagar, subia os juros da dívida à mercê dos seus obscuros cálculos de 'riscos'.
Em boa verdade, todos os trabalhadores eram 'um risco'. Para o patrão que se queixava da quebra dos valores da borracha nos mercados internacionais, o misero salário que lhes pagava era «um sacrifício». Afinal, sustentava ele aquele bando de miseráveis que se emborrachavam com cachaça para conseguirem forças para lhe garantirem, a ele patrão, a vida luxuosíssima nas grandes cidades, a rechonchuda conta em vários bancos, os filhos tratados como príncipes, viajando mundo fora e estudando e universidades europeias. Para além da opulenta casa, ou casas próprias, e das várias casas das várias amantes teúdas e manteúdas em condições que ilustravam a bondade e a riqueza do respectivo protector.
Quem suportava portanto a quebra dos lucros da borracha nos mercados internacionais? Os madraços dos trabalhadores, que constituam igualmente um risco para o cantineiro que tinha fiado e continuava a fiar os bens de consumo daquela récua humana que nunca mais saia do atoleiro infernalmente solitário, desesperadamente verde, a não ser para dentro de um buraco na terra.
Mais coisa menos coisa, o que o FMI aplica aos povos, é a receita dos esclavagistas omnipresentes neste mundo acolitados pela sua guarda avançada. Os cantineiros de todos os tempos e geografias que tratam como cidadãos de segunda os escravizado das coutadas menos rentáveis. Nós, por exemplo. Já os holandeses (que fazem férias no estrangeiro três vezes por ano) e os alemães (idem) estão bem defendidos pelos cantineiros deles, e ninguém lhes chama preguiçosos, apesar de trabalharem menos do que nós, e gastaram muito mais: porque podem.
Assim, jogando com as nossas vidas cada vez mais instáveis, tirando-nos tudo o que podem tirar, mas auferindo salários e regalias absurdas; ofendendo-se quando queremos saber da gestão da coisa pública, porque é nossa e por nós sustentada; os cantineiros do mundo têm como única preocupação agradar aos grandes donos das árvores da borracha, a quem levam a parte de leão do encapotado saque. Um saque com riscos calculados, e muito atenuado nalguns países, onde é preciso não picar demasiado as populações. Porquê? Porque pode correr-lhes muito mal, já que. mercê de um jogo democrático mais transparente, as contas públicas são bem escrutinadas e as responsabilidades atribuídas.
Dito de outra forma, há ainda países neste mundo onde a culpa nem sempre morre solteira.
Por cá...um quarto da população vive já abaixo do que foi delineado como limiar da pobreza.
Por cá... uma em cada três crianças vai para a escola com fome.
Por cá... temos avós a sustentaram, sob o seu tecto, filhos e netos.
Por cá... quem pode, vai para lá. Algures. Seringar por outros lados.
É provável que volte a moda das «sopas de cavalo cansado». Pão molhado em vinho e açúcar, que, por falta de outro alimento, foi o pequeno almoço dos grandes e dos pequeninos camponeses que, depois de começarem o dia a trabalhar no campo ainda de noite, chegavam às escolas caídos de bêbados, no tempo da radiosa ditadura de que muitos dizem sentir saudade.
Depois, dizia-se deles e da gente do campo em geral, ou dos pobres das cidades que eram estúpidos, que a cabeça deles não dava para os estudos, e que eram madraços. Um risco para os seus exploradores, portanto. Aqui, ali, em todo o lado.
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Imagem: "Rescued Children," from Best, facing p. 116. Courtesy of the Shaftesbury-Grooms Society |