domingo, dezembro 25, 2016

A impagável, inimitável, insuportável Porta Portália

A acabar de rever provas do meu romance juvenil André e a Esfera Mágica, que vai ser relançado em Fevereiro pela Bertrand juntamente com um novo título na mesma colecção, o IV volume, deixo-vos com a inimitável, a impagável, a insuportável Porta Portália. É figura recorrente nas aventuras do André. Até a mim me causa perplexidade.




A PORTA PORTÁLIA 

               O ruído de uma porta a bater fê-lo olhar para o lado. Zás! Plás! E ali estava uma porta. Uma porta de carvalho maciço, com maçaneta de rodar em latão brilhante, fechadura sem chave, caixilho, gonzos. Tudo o que uma porta precisa para existir enquanto tal. Só que, ao contrário de todas as outras portas que André conhecera, esta não tinha paredes, nem teto a enquadrá-la.             «Que esquisito», pensou ele, dando a volta para ver o que havia do outro lado.
             Não havia nada. Quer dizer, havia tudo o que lá estava antes. Campo de ervinhas curtas e verdes, semeado de malmequeres brancos.
             — Que raio… — murmurou ele, espantado. — Uma porta que não dá para lado nenhum. Uma porta desnecessária. Uma porta completamente inútil.
             — Alto aí e para o baile! — A voz que disse isto parecia vir da porta. — Inútil porquê, se faz favor? E o que faz aqui um rapaz? Serve para quê, um miúdo neste campo? Não estou a ver utilidade na presença dele. Ai, não estou, não.
             André voltou a andar à roda da porta para tentar perceber de onde vinha o som. A voz era rouca, arranhava um bocadinho os erres, e acabava as frases com um silvo ligeiro. Dava a sensação que saía do buraco da fechadura.
             — Quem está aí? Está alguém escondido atrás desta porta? — perguntou o rapaz, convencido de que alguém estava a troçar dele. Alguém muito rápido, que passava de um para o outro lado, sempre que ele dava a volta para perceber o que significava aquilo.
             — Os seres humanos estão verdadeiramente a ficar mais estúpidos, de geração para geração — resmungou a voz. — Olha bem para mim. O que te parece? — A porta abriu-se. Não havia ninguém de um e do outro lado, a não ser, evidentemente, André. E a própria porta.
             — Tu falas?
             — Não. É aquela árvore ali que gosta de mandar bocas.
             — Qual árvore? — perguntou André olhando em volta, para o mesmo campo onde nada crescia, a não ser ervas e malmequeres.
             — Exato. Então… que te parece?
             — Uma porta que fala?
             — Olha que grande coisa. Por que raios e coriscos os humanos acham que só eles têm voz? Ah… Bons velhos tempos… — A voz da porta era irónica, como se estivesse a fazer um esforço enorme para não começar a rir às gargalhadas. — A propósito, o meu nome é Portália. Sou a Porta Portália. E tu?
             — André. O que está aqui a fazer?
             — O que faço sempre. Abro-me e fecho-me, permitindo, deste modo, que as criaturas possam entrar e sair. E tu, que fazes aqui?
             — Não sei bem, mas por enquanto nada. Num momento estava no meu quarto a olhar para dentro de um berlinde, e no outro estava aqui.
             — O costume. Não sabem o que andam a fazer na vida. Tipicamente humano. Bom, se isso te ajuda… queres entrar?
             — Para onde?
             — Para dentro. A não ser que prefiras sair.
             — Bolas! — resmungou o rapaz. — Sair para onde?
             — Para fora, evidentemente. Pronto, não insisto. Tenho mais que fazer. Olha. Vê se cresces. Cresce e aparece, ’tá bem? Pode ser que nessa altura possamos, realmente, ter uma conversa interessante. Eu e tu. Adeusinho, jovem André.
             E a porta desapareceu. 




 [André e a Esfera Mágica, Bertrand, Lisboa, em data a anunciar]

sexta-feira, dezembro 09, 2016

O anjo da guarda de Variações

O António Variações teve mesmo um grande 'anjo da guarda'. A rever, acrescentar, editar a sua biografia, que vai ser relançada para o ano com a chancela da Bertrand, não resisto em partilhar este pequeno trecho sobre os seus tempos de tropa, por Angola.



Em Luanda, Delfim era taxista e vivia no Bairro da Cuca, perto do cinema Aviz. Casara. Foi então que recebeu uma carta com as seguintes notícias: António, seu irmão, perguntava-lhe pela sua saúde e dava-lhe novas da sua vida. Estava em Angola, no Depósito de Adidos, em trânsito para um qualquer teatro de guerra. Queria saber se e quando poderiam encontrar-se, antes de partir de novo:
– Eu não via o António há 14 anos e notei-lhe uma diferença enorme. Ele tinha uma personalidade forte, era muito senhor do seu nariz. Tinha crescido. Though guy – diz Delfim, textualmente, evocando o reencontro com o irmão que deixara menino em Portugal.
Acontece que Delfim era um homem mais poderoso do que se imaginaria. Ele diz, simplesmente, que “tinha várias influências” e que ele e o comandante, o senhor major Camisão, se davam “como irmãos”. O major tinha sido presidente da Câmara em Sá da Bandeira, onde estivera ligado ao Angola Sport Benfica do Lubango, equipa basquetebol, no início dos anos 60. Delfim, que à época andava pelo mato, chegou a fazer mais de uma centena de quilómetros para assistir aos treinos.
-- Agora, ambos em Luanda, ele no Depósito de Adidos, víamo-nos muitas vezes. Pedi para o chamarem e expus-lhe a situação.
Contado assim, parece de uma simplicidade imaculada. Dois amigos a olharem para o mapa da então província ultramarina portuguesa, e, de comum acordo, a decidirem destinos traçando mudanças no papel. Uma troca de nomes, em suma. Na guia de marcha, o nome do quartel e localidade a que o soldado António Joaquim Ribeiro estava adido, foi rasurado.
– O meu irmão estava para ir para Cabinda, onde a guerra estava bem acesa. E nós pusemo-lo em Sá da Bandeira, [actual Lubango], na Província da Huíla.
Meses mais tarde, um telegrama de António, ainda em Sá da Bandeira, dirigido ao seu irmão Delfim, dava conta de nova transferência iminente, para uma das zonas mais problemáticas da guerra colonial, Quitexe, no Huíge. Este foi imediatamente procurar o seu grande amigo e major do Depósito dos Adidos para lhe contar que “o rapaz agora vai para uma das zonas mais perigosas!”
– Vai daí, diz-me o comandante, “onde queres que o ponha agora?” Ah, digo eu, pode ser lá para o Sul. E o meu irmão foi colocado em Vila Roçadas (actual Xangongo). Depois foi para Pereira d’Eça (actual Ondjiva), no Cunene, onde não havia guerra nenhuma. E a seguir em Caconda, onde até formou um conjunto militar – conta Delfim Ribeiro. (Manuela Gonzaga, biografia de António Variações (em progresso), baseada em António Variações Entre Braga e Nova Iorque, Ancora, Lisboa, 2006).


sexta-feira, dezembro 02, 2016

Efemérides - há um ano eu era (pré)candidata às Presidenciais

Durante quase dois anos -- a entrega à política activa foi muito grande -- não tive espaço mental para a literatura. Por fim, dei um pequeno contributo muito pessoal às Causas que me norteiam. O PAN precisava de um deputado (pelo menos!!) no Parlamento. Só para começar. Mas entretanto, era necessário romper as barreiras mentais que reduziam um partido de grandes causas a uma associação de «tontos e tontas» ao serviço de «cãezinhos e gatinhos». Ainda por cima, com uma dolorosa rotura interna recente. Basicamente, com uma imprensa muito distraída, era assim que nos viam. O trabalho, imenso!, feito nas fileiras e nas rectaguardas, quase sem meios, era desconhecido. Logo desvalorizado e reduzido a estereótipos. 

Todos, no ainda tão pequeno partido, tivemos que dar o máximo em tempo, modos, disponibilidades. E demos. A prova está aí - no Parlamento há uma Voz como nunca se tinha ouvido. Agora, longe e perto, recordo com orgulho, confesso, este pequeno passo, tão gigantesco para as minhas possibilidades. Aterrador, sim. Mas estimulante. Recordo também com uma imensa gratidão o que vi, ouvi, conheci e aprendi. E as pessoas maravilhosas que estiveram connosco, apoiando-me, apoiando-nos com entusiasmo. 

Tudo começou, publicamente, em Agosto de 2015 e terminou a 21 de Dezembro do mesmo ano. Com muitas viagens pelo país fora. Meios reduzidíssimos. Empenho total. E muita alegria. O que me moveu e move?Dar Voz a quem não a tem. Olhar a economia com outros olhos, transformando-a numa ferramenta ao serviço das pessoas, de modo a que todos juntos possamos cortar o ciclo de escravatura económica para o qual estamos a ser arrastados. Todos, sem dó nem piedade, sem fronteiras nem barreiras. Não tenhamos ilusões.  



Hoje, um ano depois desta entrevista, onde abordo as razões desta minha candidatura apoiada pelo PAN, Pessoas, Animais, Natureza,  a minha vida é novamente tão outra. Dois livros a caminho, outro na cabeça à espera de vez para ser escrito, e mais em fila de espera. E Causas, muitas, e sempre. Se todos fizermos a nossa pequeníssima parte, o mundo muda e de que maneira.

Grata, sempre. Muito.