domingo, outubro 23, 2022

Amores e amoras: sonhemos.

 Alguém, por aqui, tem, teve, ou quer vir a ter sonhos lúcidos? Eu já. Poucas vezes, mas inesquecíveis. É uma questão de treino e de pequenos preparativos durante o acordar, com técnicas muito simples. Por exemplo: consciencializarmo-nos dos passos que damos ao caminhar e repetir, "estou acordada". Focarmo-no no gesto comezinho de acender ou apagar a luz -- nos sonhos não funciona. E noutras coisas que constituem pequenos testes de realidade diurna em que conscencializamos, acordados, que estammos ... acordados. Até ao momento mágico em que, a dormir profundamente, fazemos o clique e sabemos que aquela dimensão, elástica, esquiva, mas tão sólida como a dos quotidianos acordados, é toda outra:


"Estou a sonhar e sei que estou a sonhar. Wowww".

Da minha época de Diários Oníricos guardei os poucos em que a minha persistência foi premiada, mas nem precisava de os escrever tão marcantes foram pela revelação. É que, sendo a vida tão breve, e sendo parte dela passada a dormir, é justo conquistarmos um pouco desse tempo para aprender mais sobre nós próprios, alargando o patamar daquilo a que chamamos realidade, e, por brinde, ainda nos divertirmos muito. A sensação de liberdade é exultante e indizível.
Sobretudo, em tempos de tamanha incerteza e tanta cortina de fumo e tsunamis de mentiras, que de tão repetidas vêm a ser tomadas como verídicas. Tempos em que a distração hipnótica e não controlada por nós, nos prende e escraviza a conceitos, ideias, objectivos e falsos ideais de beleza por medida, riqueza só para eleitos, falsos triunfos, amargas vitórias, e palcos, muitos palcos de todas as dimensoes e para todas a medidas onde os egos de cada qual se agigantam por breves cinco minutos de falsa fama, alimentando o gigantesco e egóico processo social que nos devora.
Vale tudo, neste entorpecedor método de nos adormecer, levando-nos a pensar que estamos acordados no carnaval de loucos por onde nos arrastam, por onde nos deixamos arrastar, e por onde, sem darmos por isso, vamos sendo mansamente conduzidos para os redutos e redis onde nos querem mansos e silenciosos e desprovidos de palavras nossas. Anestesiado assim o livre pensamento, pois se há tanta gente a pensar por nós, matam-nos a imaginação criadora com a qual todos nascemos.

E quase nem damos por isso.
Sonhemos muito, amores e amoras! Em liberdade. É uma viagem a ser conquistada por nós enquanto seres despertos, sem efeitos secundários. A não ser a profunda e exultante alegria que nos abençoa sempre que fazemos descobertas pessoais e intransmissíveis mas partilháveis e mais comuns do que poderíamos imaginar.
'Bora marcar encontro no lá para além?





terça-feira, outubro 18, 2022

A realidade é um ponto de vista? Ou dois monstros a olharem para mim

    Era tudo muito belo e nós, jovens os dois, estávamos a começar a viver um encantamento que sabe-se lá onde nos levaria, porque ele já falava de futuro, quando ainda nem tínhamos começado sequer a ter passado. Na noite belíssima havia lua, mar em frente, mão na mão. E um ruído incessante de cigarras, grilos, gritos de pássaros nocturnos e o marulhar das ondas. Uma aranha passou à nossa frente, em movimento pendular, pendurada no seu fio preso no ramo de um arbusto. Foi epifânico, porque tudo o mais desapareceu e começei a tentar ver-nos, aos dois, pelos multifacetados olhos da pequenina aranha. E assim, num clarão que durou microsegundos, vi dois monstros dentro de uma estrutura monstruosa, a olharem para mim, aquela de mim que estava a tentar imaginar-se aranha.. Mas tudo o que, para mim, era real, acabara de se estilhaçar.


    Tentei ir mais longe. Em exercício de imaginação, pensei nas mais diversas criaturas que me vieram à cabeça, desde cães, lobos, peixes, lulas, árvores, moscas, cobras, pássaros... cada uma das quais com os seus orgãos de apreender o real. Cheirando, vendo, ouvindo, sentindo, de forma completamente diversa da nossa. Era maravilhoso e avassalador. Ele perguntou em que estás a pensar? e eu disse que estava a perceber que a realidade é um ponto de vista muito particular, e ele perguntou, perplexo, como assim? e eu falei de aranhas e pinguins, e lobos e pardais, e lulas e tartarugas. O quê?? Sim. Cada uma dessas espécies vê e sente o mundo, aquilo a que chamamos real, de outras formas, com outras cores ou sem cores nenhumas, através de sons e infrasons que não captamos, e de cheiros que nem imaginamos que existem, e por aí fora.


Camaleão-louva-a-deus-palhaço (Odontodactylus scyllarus)

    Então os meus ouvidos captaram o ronronar do carro mover-se. Já não estávamos de mão dada porque ele estava ocupado com mudanças, volante, pedais: "Vou levar-te a casa, querida. Estás muito cansada e eu também tive um dia puxado. Amanhã falamos." E eu: "Mas ouviste, entendeste, o que acabei de dizer?" E ele: "Ouvi e entendi perfeitamente, e vou dormir para esquecer porque se começar a pensar assim tenho a certeza de que acabarei por enlouquecer. A minha realidade, estreita e pequenina como dizes, chega-me e sobra-me. Não leves a mal, querida. Conheço os meus limites."Este momento fulgurante assinalou também o momento em que ficámos fora da órbita um do outro. Foi indolor. O encantamento persistiu durante algum tempo, mas já não havia chão para essa tão frágil flor.



Imagem: O camaleão-louva-a-deus-palhaço tem os olhos mais complexos do reino animal. Vive em tocas nas rochas e no fundo do mar. Enquanto nós, humanos, temos dois tipos de fotorreceptores (um deles para a visão a preto e branco e outro que permite a visão em cores), ele tem 16, o que permite distinguir cores invisíveis a vários outros animais, do ultravioleta ao infravermelho.

domingo, outubro 09, 2022

Que a paz esteja connosco

 Já se cruzaram as fronteiras todas e nada, nem ninguém, vai ficar de fora. Sobre a mesa das operações redentoras, discute-se, ao pormenor de última hora, o novo esquisso geopolítico à escala do planeta. Longe dos teatros de guerra, mas tragicamente perto de tudo, porque a guerra dos nossos tempos inquina a Terra inteira e todas as suas formas de vida, estrategas e dirigentes dos grandes blocos cavalgam os ventos da energia que fez nascer a civilização em que vivemos. Com um olho nos recursos hídricos, outro nas fontes primárias dos combustíveis que nos alimentam os quotidianos.

A fome já chegou a muitos lados. Nalguns países é (forçadamente) endémica. São as populações da regiões tragicamente mais ricas de recursos, que vendem energia e minérios imprescindíveis à sua instalação e desenvolvimento, mas que são deixadas às escuras e na mais infame pobreza... cortesia do Ocidente civilizado, claro. Mas tudo está a mudar tanto que, nos outros paises onde a abundância foi regra a partir de meados do último século, a escassez de alimentos já determinou a mobilização de exércitos a postos para conter as multidões quando a fome explodir em focos de violência global. E esta gente claramente armada, para nos defender, pois, é a ponta mais visivel do domínio implacável que já começou a vigiar e condicionar todos os nossos movimentos.
Mas a defesa de um país invadido, a Ucrânia, de onde milhares e milhares de cidadãos tiveram de fugir, e tantos já morreram, não passou pela mesa das negociações. A diplomacia esteve e está ausente desta tragédia no coração da Europa. De uma Ucrânica reduzida a escombros, e de uma Rússia acuada e capaz de ir às últimas consequências, só se contabiliza o número avassalador de mortes, sempre em crescendo, e a animadora, sempre em crescendo, entrega de armamento cujo valor dava para acabar com a fome "endémica" no mundo todo. Se alguma vez tivesse existido sequer a sombra dessa vontade. E com falso optismo, reportam-nos "sanções" ao país invasor, que acima de tudo nos penalizam a todos nós, gente.
Com o presidente dos Estados Unidos a invocar o Armagedom, já se normaliza a "inevitabilidade" da utilização das armas de destruição total que existem em grande quantidade de Leste a Oeste. Mas quantos países, entre todos os que existem ou querem existir, já se manifestaram aberta e inequivocamente pela Paz? Quantas manifestações têm eclodido a exigi-la? Já se esqueceram quando, na iminência da destruição do Irão por via das armas de destruição massiva que o pais manifestamente não tinha, as gentes vieram para a rua, em todo o mundo?
E quantos politicos, em Portugal e no resto do mundo, têm dado a cara e emprestado a voz pela defesa dos indefesos -- 90% da população mundial, números optimistas --, e todas as restantes criaturas animais e vegetais que o habitam? Saberão estas excelências o que está realmente em jogo? O que vai realmente acontecer? O que nos espera, sem sombra de dúvidas? Porque não falam, porque não gritam, porque não exigem? Onde estão os Martin KLuther King e os Mandela dos nossos tempos? É que só nos chegam noticias de gabinetes, onde é gerida a estratégia da autosobrevivência dos grupos que representam...
Resta-nos a pequenina e bruxuleante luz indestrutível da esperança. E velas, muitas, muitas velas, para atravessarmos a escuridão do inverno que se aproxima.
Que a paz seja connosco.

Sobre a imagem: no dia 26 de Janeiro de 2014, durante a oração do Angelus, duas crianças acompanhadas pelo Papa Francisco, soltaram algumas pombas brancas da janela do Palácio Apostólico do Vaticano. Na praça, uma multidão seguia o evento. Subitamente, um corvo e uma gaivota atacaram ferozmente uma das pombas.
Pode ser uma imagem de ave e ao ar livre