domingo, dezembro 30, 2012

E depois do adeus

[Escrito em Lisboa Dezembro 74/ Sines, Maio 1976]. Na tertúlia do Zazou Café promovida por Samuel Pimenta, «Degustar palavras» li este poema escrito no regresso, reescrito em 1976, e revisto este ano por razões que não vêm ao caso.] 


ÁFRICA

I
O tempo deixou-me este gosto na pele
Um nó na garganta.
Calor na alma
Tatuagens de recordações, espalho-as no chão, à minha volta

Onde estão todos?

Há gritos de sereia num porto, e eu lambo cinzas.
Ainda estão quentes.

Paredes nuas.
Colares de missangas vermelhas, colares de missangas negras
Um bater surdo de tambores
Queimadas a recortar montes, a bordar distâncias
Templos, véus
Estradas
Sob o mato rasteiro de silvas
Savanas remotas do meu encanto
Muros e grades

Como puderam esconder tamanho esplendor?

II
Andamos juntos e ainda não te vi o rosto.
Amei-te, e eras sempre diferente.
Se soubesses por onde te procurei.

Ouves o meu grito?

No calor da praia
À procura das tuas costas morenas
Do outro lado do mar
Á espera que dissesses na concha do meu ouvido:
Somos os marinheiros e o mar e o navio, a tempestade e o sono.
Sonho.
Queria dizer-te isto:
Viver é amar cada segundo como se fosse o último,
Mas não é sempre assim.
Gosto de redes e de laços. Gosto de anéis.
Gostava de já não gostar.
De já não gostar. 

III
Depois de enterrar os mortos
Esqueci-me do local das sepulturas.
Às vezes ainda lá vou
Depois de queimar deuses numa lareira que nem existe,
Ouço-me
A gritar por eles.
E fico, de mãos nuas, a escavar palavras e silêncios.
Procuro, procuro.
Penso: para onde vamos meu amor?

Volto sempre.
Da soleira da porta vejo-te
A acenar-me
Quando me volto na estrada, 
Com as mãos em concha protejo-me da luz
Para te ver bem
Antes que a estrada me engula.
Faço sempre assim.

Penso: porque não me prendeste com laços e anéis
Nas redes dos teus braços adormecidos?
E então volto.
Sempre à espera
De ti.
Esvazio-me. E penso: quem és tu?

IV
No vento da tarde soltei os ramos
Na Primavera abri a copa das árvores
Senti-te pousar.
Chovia e entraste no meu tronco.
Tremias.
Disseste:
«tenho tanto medo».

Mar manso, mar manso. Pescador da Ilha, onde estão as minhas redes?
Adormecemos.

Quando acordei
Os sons que se evaporavam da terra estavam ocres,
E havia tanto fumo.
Às vezes, o som dos sinos amansava a tarde,
Por muito pouco tempo.
À noite, não conseguia ouvir bater o coração escuro do mundo:
Falavam todos ao mesmo tempo.
Pareciam perdidos e riam

V
Quero estar só.
Cobri-me de colares de missangas,
Sementes de baobá
Lamber as minhas tatuadas recordações
E despejar as mãos vazias.
Quero esta solidão indizível para te encontrar amor,
Caleidoscópio de rostos, mil faces a tua,

quero saber o teu nome.

E rasgar tanta coisa,
 Estes véus, ai estes véus
Pesa tanto o estômago vazio,
O saco vazio do vagabundo,
A alma solta de quem viaja,
Este amor que sinto, esta dor que tenho,
Ao ver-te assim
As mãos em concha sobre os olhos adormecidos,
O peito esquecido,
Os joelhos vergados

Chamei-te tantas vezes.
Tantas vezes.


Se ao menos soubesses como te amo.



quinta-feira, dezembro 27, 2012

Diários de alguém que partiu

Durante mais de vinte anos tive em meu poder os diários de uma amiga. É uma história tão estranha que dela só deixo aqui o lado mais residual. Um dia, ela veio ter comigo. «Guarda-mos. És a única pessoa a quem seria capaz de pedir isto». Estendeu-me um pequeno embrulho castanho, aberto. Olhei para ela, sem entender. Estávamos num café de passagem, daqueles a que nenhuma de nós frequentava ou frequentaria, a meio caminho entre as nossas mútuas casas. Nesse tempo, já nem sequer éramos próximas, pelo que o pedido dela me aturdiu.
- O que faço com isto?
- Guarda-mos contigo. Por favor.
- Até quando?
- Até um dia destes. Até sempre.

Levei o embrulho para casa, e selei-o com tiras de fita cola. Depois enfiei-o nas profundas de uma gaveta, e esqueci-me dele. Ou fiz por isso. Nunca mais nos encontrámos. Nunca mais nos telefonámos sequer. Ela mergulhara numa trepidante vida nova. Estava muito feliz. Estava a recuperar os anos todos em que ficara longe do seu grande amor, que, entretanto, voltara para ela.

Depois, soube que o final feliz tivera desfecho infeliz. Ela estava outra vez sozinha. Esperei que me contactasse. Esperei sei lá o quê. Até ao dia em que, bruscamente, alguém me disse que ela tinha morrido. «Não soubeste? Foi há poucos dias». Eu também tinha, entretanto, mudado de casa, mas carregando aquele «peso» a que de repente atribuí um valor ainda maior. O que fazer? Havia pessoas a quem devia entregá-lo, mas tinha de saber se a altura era certa, e se estariam preparados para receber o pequeno despojo poético das aspirações de uma menina adolescente, que se prolongara pelos desabafos da mulher madura como a conheci.

Até então, nunca lera ou abrira sequer o embrulho castanho onde permaneciam aqueles Diários. Mas entretanto  era preciso tomar uma decisão em relação a eles, e honrar a  memória daquela amiga. Só então abri o envelope, e li algumas páginas, em leitura cruzada e comovida. Mas os encontros para reencaminhar este legado não foram fáceis, nem imediatos. E assim passaram mais uns anos. 

Este Natal, finalmente, o precioso legado encontrou o seu justo caminho. Pu-lo no correio há uns dias, com votos de alegria e felicidade para os que, de forma directa, poderão comungar os segredos de alma e coração desta pessoa que fez parte da minha vida durante alguns anos, e que faz e fará parte da deles  para sempre.

Memórias in «Degustar Palavras»

O convite partiu de Samuel Pimenta -- um dos oito premiados do Prémio Jovens Criadores 2012 na vertente de Literatura --, que organiza regularmente no Zazou - Bazar & Café tertúlias literárias que estão a converter-se numa referência.
Hoje, dia 27 de Dezembro, quinta-feira, pelas 21h30, lá estarei portanto. O mote é-me particularmente querido. Memórias. 
Que histórias irão surgir? Ainda nem eu própria sei. A informalidade destes encontros apelam ao melhor da nossa expontaneidade e à partilha com todos os presentes a quem o contributo é também solicitado e sempre bem acolhido. 






As imagens do evento, infelizmente sem o som das palavras, nem o riso ou as palmas, ou o cheiro delicioso dos petiscos, aqui ficam para dar uma ideia do que ali se passa.
 https://www.facebook.com/events/200957100028879/

quinta-feira, dezembro 20, 2012

Love you, adoro-te e tudo e tudo

Gosto de ti. Amo-te. A sério? Amo-te muito. Adoro-te. A sério? Então porque é que nunca o dizes? Ah porque eu sou mesmo assim. As palavras entalam-se-me no peito e quando chegam às cordas vocais embrulham-se no ar que respiro, e então respiro muito fundo, mesmo muito fundo como quem está quase a afogar-se, e depois quando vou à procura delas, das palavras, fugiram e só me ocorrem coisas parvas. Ah, e então dizes que não dizes porque não vale a pena dizer o que dizes que eu já sei que ias dizer. É isso? Com muito menos vocabulário, é mesmo assim. Oh, que merda, assim sendo não te vais declarar nunca, é isso? Para quê? Se tu sabes e eu sei e ambos sabemos que ambos sabemos?

Ela pensou e pensou, e finalmente encolheu os ombros e ia responder qualquer coisa, mas as palavras morreram-lhe na boca porque ele as afogou de beijos. Foi a declaração de amor mais intensa que ela recebeu em toda a vida. Mas naquela altura era jovem demais para ter a noção disso. Em todo o caso, os dois ficaram juntos, mais ainda do que já estavam. Ficaram juntos para sempre.

Ou então sou eu a imaginar felizes desenvolvimentos para finais menos felizes, Mas que importa. Naquele tempo amavam-se totalmente, e sobre amores assim, o tempo não tem poder, embora o espaço possa determinar outras soluções menos idílicas.

É a vida.

terça-feira, dezembro 18, 2012

terça-feira, dezembro 11, 2012

Os grandes rios são tão pequenos à nascente

Éramos poucos? Se calhar, sim. Um bom punhado de gente, que desfilou em nome da defesa de direitos que, para alguns, ainda são muito risíveis, ou muito absurdos, ou profundamente inconvenientes. O PAN, Partido pelos Animais e pela Natureza, juntou as duas comemorações, Dia Internacional dos Direitos Humanos, e Dia Internacional dos Direitos dos Animais, com uma marcha que começou no Rossio e, subindo pelo Chiado se concentrou no Largo do Camões. O apelo, na multiplicidade de vectores, foi um só. Fim da violência contra pessoas, animais e natureza. E foram várias e muito importantes as causas invocadas.

Éramos poucos? Talvez cinquenta, sessenta, em presença. Mas este é um apelo que toca muitíssimos mais de modo que, em pensamentos e de coração, estava ali uma grande multidão.

É por isso que gosto tanto do PAN, que, mais do que um partido, é um Inteiro. Sou amiga, há várias reencarnações nesta mesma vida, do seu fundador e líder, Paulo Borges. Acompanhei de longe o nascimento deste ideal que se concretizou no projecto politico que não pára de crescer. E o PAN, apesar da minha reduzida utilidade, solicita-me para estas e outras acções, quanto mais não seja para estar de corpo presente. Sempre que posso, vou e estou. Como ontem, em que tive o privilégio de ouvir e aplaudir Teresa Nogueira, Carlos Teixeira e Inês Real. E Paulo Borges. Cada um deles empenhado, nomeadamente, na defesa dos «Direitos Humanos», na «Situação Ambiental e Ecológica», e nos «Direitos dos Animais».Partilho o vídeo, para que as suas mensagens tão inspiradoras e prementes possan ser vistos por muitos mais.

Pessoalmente, tento fazer destas bandeiras uma causa minha, no quotidiano. E por fim, a olhar o grupo diante da estátua, disse qualquer coisa como: «É que não somos poucos. Somos imensos. Há 20 anos, em Portugal, era impossível juntar um grupo destes, tão grande e tão empenhado, nem sequer nas nossas casas. Há dez anos, muito dificilmente somaríamos, em público, mais de meia dúzia. Hoje, em Portugal, pelo PAN ou por outras forças do mesmo sentido, há já muita gente a dar a cara.

Quando nascem, os rios, mesmo os maiores rios do mundo, são tão pequenos.



domingo, dezembro 02, 2012

Boas Notícias - Tempo dos Milagres: O "Importantómetro"

 A minha crónica habitual no nosso Boas Noticias, de que deixo um extracto:

 «Ela estava inconsolável e desesperada. Por causa daquela inimiga, a única inimiga da sua vida, viver tornara-se um pesadelo.
- Ela bate-te?
- Claro que não, se batesse era mais fácil porque eu batia-lhe também. Mas diz mal de mim às minhas amigas, e ficam todas a rir quando eu passo. E diz mal de mim aos rapazes e eles ficam muito sérios a olhar para mim, quando eu passo. Eu odeio ir à escola. Eu odeio a Maria José. A minha vida é um pesadelo.»

Para ler o resto: Boas Notícias - Tempo dos Milagres: O "Importantómetro"

quinta-feira, novembro 29, 2012

À mesa com Aguinaldo Silva

Foi um jantar memorável que a minha querida amiga Cristina Pombo promoveu entre dois amigos comuns que andavam para se conhecer há que tempos. Tive assim o privilégio de passar belíssimos momentos com um homem de quem sou absolutamente fã. Aguinaldo Silva, guionista soberbo, autor de novelas de culto de inesquecível memória - Tieta do Agreste e Roque Santeiro por exemplo! - de séries premiadíssimas e de livros, como por exemplo 98 Tiros de Audiência editado em 2009 pela Contraponto, que já comecei a ler, deliciada.

Por acaso, ou nem por isso, Aguinaldo já conhecia alguns livros meus como Imperatriz Isabel de Portugal que lhe foi oferecido recentemente. Para além disso estava bastante interessado nos Jardins Secretos de Lisboa e na historia da Maria Adelaide Coelho da Cunha. Aliás trocamos obras, ele ofereceu-me o seu último livro, eu dei-lhe os Jardins e a Cristina ofereceu-lhe a história da senhora que fugiu com o motorista e trocou um palácio por uma casa modesta em Santa Comba Dão, acabando por ir parar ao manicómio etc. etc. «Que história fantástica» - comentava ele, que ate já tinha lido artigos sobre o tema e o livro.

Falamos de tanta coisa! Cruzaram-se tantas histórias. Rimos tanto e comemos tão bem no Olivier, que até veio à mesa cumprimentar aquele homem lindo, grande e de cabelo todo branco que Portugal inteiro conhece e ama e que o Brasil venera. E, inevitavelmente, falamos de Lisboa porque essa é uma paixão que nos une. E do céu que nos cobre com um manto azul luminoso e tão doce como não se vê em mais lado nenhum do mundo vasto e pequeno que nos abriga na viagem de viver.
Obrigada querida Cristina e obrigada Vitor, que tirou as fotografias e também tem muito para contar.
Entretanto, visitem o blogue do Aguinaldo, que tem link para o seu portal. 

domingo, novembro 25, 2012

Isabel de Portugal, Fernão de Magalhães e as ilhas de Maluco


Isabel de Portugal, seguramente a mais rica princesa da Cristandade, não levava apenas um dote soberbo que tão necessário era às arcas sempre tão vazias do seu noivo. Nas palavras de Damião de Góis, «Mulher alguma que não fosse herdeira» trouxe em casamento tão grande dote a seu marido: novecentos mil cruzados em «dinheiro de contado» – dobras de ouro castelhano –, e mais cem mil em jóias e enxoval. Mas a par dessa fortuna a imperatriz ia incumbida de sanar, ou ajudar a ultrapassar, alguns conflitos pendentes entre ambos os reinos. Um deles, seguramente o mais espinhoso, remetia para Fernão de Magalhães e sua incrível descoberta que abrira, por Ocidente, o caminho marítimo do Oriente que levava às ilhas das Especiarias. E estas, segundo defendiam os espanhóis, caía em tombo de Castela.  
 
O que se passara?

Uma grande mágoa. Navegador e soldado, Fernão de Magalhães provara a sua valentia em África e nos sete anos que andara pelo Oriente. Combatera com D. Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque. Lutara com denodo em Malaca, o verdadeiro empório comercial de todo o Oriente, a artéria do comércio muçulmano que Afonso de Albuquerque havia jugulado. Combatera nos presídios de África. De uma ferida em Azamor, ficou mesmo a coxear para o resto da vida. Das calúnias que aí o davam por ladrão, e que feriram mais do que tudo, conseguiu ilibar-se. Mas quando se apresentou diante rei, uma vez e outra, pedindo-lhe um aumento da sua moradia, D. Manuel recusou. E o «leve agravo» – nas palavras do bispo de Silves – «abriu tão profunda chaga» no seu ânimo que Fernão de Magalhães se apressou a trair o rei «que o educara, a pátria que lhe dera o ser», e afrontado – em Jerónimo Osório o vocábulo é «comovido» – o valoroso fidalgo quebrou a sua lealdade e «pôs a república em extremo perigo».

Enfim, passou-se para Castela apresentando-se ao rei D. Carlos para o advertir que as ilhas de Maluco, assentadas para além da aurea chersonesus – o estreito de Singapura –, lhe pertenciam. Acompanhava-o Rui Faleiro, português de nação, astrólogo judiciário, também ele agravado do Venturoso, que o não o quisera tomar para este ofício, embora fosse coisa de que D. Manuel tinha muita necessidade.
E finalmente, na vila de Valhadolide a 22 de Março de 1518, Magalhães afirmou perante o jovem rei e a sua corte de Castela que aquelas ilhas caíam em tombo do Sua Majestade, invocando o testemunho dos astros, mapas e informações privilegiadas. [...]

Em Manuela Gonzaga (2012) -- Imperatriz Isabel de Portugal, Lisboa, Bertrand, 142 e segs.

Algumas fontes consultadas:
Para o dote de dona Isabel: 
Damião de Góis (1926) – Crónica do felicissimo Rei D. Manuel, 4 partes, I, cap. lxxv.Em
Braancamp Freire, «Ida da Imperatriz D. Isabel para Castela, encontram-se recolhidos vários documentos relativos ao dote de Isabel, cf. 83-84; 91-100; 100-101; 103-104. Em
Especificado em todos os detalhes em, Capitulaciones matrimoniales de Carlos V e Isabel, Toledo, 24/10/1525, Fernández Álvarez, Corpus Documental de Carlos V (cinco volumes, 1973-1981), I, 100-115; HGCRP, III, cap.vi, 146.
Para Fernão de Magalhães:
João de Barros, Décadas, Dec. III, Liv. V, cap. viii (onde se fala nos negócios de Fernão de Magalhães). D. Jerónimo Osório (1944), Da Vida e Feitos de El-Rei D. Manuel, 2 vols.,II vol. 225-226.