Isabel de Portugal, seguramente a mais rica princesa da Cristandade, não
levava apenas um dote soberbo que tão necessário era às arcas sempre tão vazias
do seu noivo. Nas palavras de Damião de Góis, «Mulher alguma que não
fosse herdeira» trouxe em casamento tão grande dote a seu marido: novecentos
mil cruzados em «dinheiro de contado» – dobras de ouro castelhano –, e mais cem
mil em jóias e enxoval. Mas a par dessa fortuna a imperatriz ia incumbida de
sanar, ou ajudar a ultrapassar, alguns conflitos pendentes entre ambos os
reinos. Um deles, seguramente o mais espinhoso, remetia para Fernão de
Magalhães e sua incrível descoberta que abrira, por Ocidente, o caminho
marítimo do Oriente que levava às ilhas das Especiarias. E estas, segundo
defendiam os espanhóis, caía em tombo de Castela.
O que se passara?
Uma grande mágoa. Navegador
e soldado, Fernão de Magalhães provara a sua valentia em África e nos sete anos
que andara pelo Oriente. Combatera com D. Francisco de Almeida e Afonso de
Albuquerque. Lutara com denodo em Malaca, o verdadeiro empório comercial de todo
o Oriente, a artéria do comércio muçulmano que Afonso de Albuquerque havia
jugulado. Combatera nos presídios de África. De uma ferida em Azamor, ficou
mesmo a coxear para o resto da vida. Das calúnias que aí o davam por ladrão, e
que feriram mais do que tudo, conseguiu ilibar-se. Mas quando se apresentou
diante rei, uma vez e outra, pedindo-lhe um aumento da sua moradia, D. Manuel
recusou. E o «leve agravo» – nas palavras do bispo de Silves – «abriu tão
profunda chaga» no seu ânimo que Fernão de Magalhães se apressou a trair o rei
«que o educara, a pátria que lhe dera o ser», e afrontado – em Jerónimo Osório
o vocábulo é «comovido» – o valoroso fidalgo quebrou a sua lealdade e «pôs a
república em extremo perigo».
Enfim, passou-se para Castela apresentando-se ao rei D. Carlos para o
advertir que as ilhas de Maluco, assentadas para além da aurea chersonesus – o
estreito de Singapura –, lhe pertenciam. Acompanhava-o Rui Faleiro,
português de nação, astrólogo judiciário, também ele agravado do Venturoso, que o não o quisera tomar
para este ofício, embora fosse coisa de que D. Manuel tinha muita necessidade.
E finalmente, na vila de Valhadolide a 22
de Março de 1518, Magalhães afirmou perante o jovem rei e a sua corte de
Castela que aquelas ilhas caíam em
tombo do Sua Majestade, invocando o testemunho dos astros, mapas e informações
privilegiadas. [...]
Em Manuela Gonzaga (2012) -- Imperatriz Isabel de Portugal, Lisboa, Bertrand, 142 e segs.
Algumas fontes consultadas:
Para o dote de dona Isabel:
Damião de Góis (1926) – Crónica do felicissimo Rei D. Manuel, 4 partes, I, cap. lxxv.Em
Braancamp Freire, «Ida da Imperatriz D. Isabel
para Castela, encontram-se recolhidos vários documentos relativos ao dote de
Isabel, cf. 83-84; 91-100; 100-101; 103-104. Em
Especificado em todos os
detalhes em, Capitulaciones matrimoniales de Carlos V e Isabel, Toledo,
24/10/1525, Fernández
Álvarez, Corpus Documental de Carlos V
(cinco volumes, 1973-1981), I, 100-115; HGCRP, III, cap.vi, 146.
Para Fernão de Magalhães:
João de Barros, Décadas, Dec. III, Liv. V, cap. viii (onde se fala nos negócios de Fernão de Magalhães). D. Jerónimo Osório (1944), Da Vida e Feitos de El-Rei D. Manuel,
2 vols.,II vol. 225-226.
2 comentários:
Este livro é uma maravilha, a historia maravilhosa, vale mesmo a pena ler.
Memórias comuns, passado nosso tão presente mesmo que aparentemente esquecido.
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