quarta-feira, julho 23, 2014

Liberdade

As maiores feridas são as que causamos a nós próprios. Mas há feridas inevitáveis, necessárias. A adaga do conhecimento causa dores brutais. Revolve as nossas entranhas mais entranhadas e atinge-nos até ao país dos sonhos. Mas não mata. Pelo contrário, os seus sulcos sangrentos abrem-nos o caminho para a liberdade - que só se conquista com os pés em ferida e o peito a arder. E muita solidão.

domingo, julho 20, 2014

Fátima Lopes entrevista Manuela Gonzaga em A Tarde é Sua


Foi um momento televisivo comovedor. Anos depois, quando todos estavam a voltar, Fátima Lopes , então com oito anos de idade, foi com os pais para Maputo onde também viveu por dentro a realidade moçambicana que não esquecerá jamais. Essa partilha, descontados tempos e modos, acaba por estar subtilmente presente na forma como a jornalista e apresentadora do programa conduziu a nossa conversa. Destaco, da apresentação do meu livro, as frases:

Este livro é «Um recordar de histórias que fizeram dela a mulher que é, o reviver de momentos que ainda hoje a fazer sorrir. [...]; uma viagem no tempo e no espaço. É uma homenagem aos pais e ao passado familiar. [...] uma ode ao amor. À família. À vida. E a África.»

Para ver a entrevista na íntegra: - http://www.tvi.iol.pt/programa/a-tarde-e-sua/4140/videos/133829/video/14167670/1
 

Já lá vai Pedro Soldado


 
 
A primeira vez que ouvi este poema de Manuel Alegre cantado, não me lembro se por Manuel Freire se por Adriano Correia de Oliveira, foi em Vila Cabral. Era uma música proibida, que toda a gente ouvia e sabia de cor. Dava muita vontade de chorar - nós estávamos rodeados de 'Pedros soldados' que viviam no quartel da cidade e nos múltiplos e improvisados quartéis do mato para onde iam e de onde voltavam em colunas militares. Nas grandes cidades como a Beira e Lourenço Marques, e até quase ao final da década (68-69), eram muito desvalorizados. Foi preciso o jornalista Guilherme de Melo... com o fotógrafo Carlos Alberto começarem a correr as zonas de guerra relatando e ilustrando quotidianos tremendos num conjunto de grandes reportagens publicadas no Noticias de LM, para as populações citadinas acordarem para o sacrifício de sangue que estava a ser exigido àqueles miúdos de Trás-os-Montes, Beiras, Alentejo e Algarve. Jovens que dos becos de Alfama e das ruelas da Mouraria, e do cais da Afurada, e das ruelas da Sé do Porto, enfim, de Portugal Metropolitano inteiro, que desaguavam nas desconhecidas Províncias Ultramarinas para estancarem, nos matos da guerra, a imparável muralha da guerrilha. 

Para nós, os que vivíamos lá onde tudo se passava - Niassa, Tete, Cabo Delgado - nada do que as reportagens traziam era surpresa. Mas foi reconfortante ver estabelecida a justiça. Afinal os «pretos», os «turras», não eram tão burros e incompetentes que só por cobardia e indolência não tínhamos resolvido o 'assunto'. Afinal, a guerrilha era um assunto seríssimo. Afinal, os soldados não morriam todos de acidentes nas viaturas que mal sabiam conduzir. Afinal o inferno existia e eles estavam lá. Os 'Pedros Soldados' de olhar vidrado de solidão e dor de quem viu morrer camaradas, de quem recebeu de raspão o beijo da morte, de quem estourava de sede, de fome, de medo nas longuras de um território desconhecido e hostil. E onde, mesmo assim, eles aguentavam. Heroicamente, sim. Não tenhamos medo das palavras. 

Julgo que ainda hoje, pelo menos aos olhos dos antigos guerrilheiros e reconhecidos heróis moçambicanos, os soldados portugueses da Guerra do Ultramar são mais respeitados do que pelas nossas autoridades de há décadas. Até porque a medida do herói é a medida do seu inimigo. Desde o rescaldo da mítica Guerra de Tróia que esse respeito misturado com veneração entre antigos inimigos mortais que se guerrearam até à morte, foi estabelecido no cânone da literatura imortal.


Fontes para aprofundar o tema (citadas em Moçambique para a mãe se lembrar como foi)

Guerra Colonial 1961-174 –
Centro de Documentação 25 de Abril/Universidade de Coimbra
 
Alguns blogues
 
Dos Veteranos da Guerra do Ultramar – Angola-Guiné-Moçambique-Cabo-Verde-Índia-Macau-São Tomé e Príncipe-Timor 1959-1975 http://ultramar.terraweb.biz/index.htm
– NUNES, Eduardo Maria Batalhão de Caçadores 598, http://batalhaodecacadores598.blogspot.pt/
– GIL, Fernando, Moçambique para todos,
– GIL, Fernando, Macua de Moçambique,
– MARTINS, José Batalhão de Caçadores 1891,
http://bcac1891.blogspot.com/ (requer permissão para consulta).
– TEIXEIRA, José et alia, ma-schamba,
SANTOS, Joaquim Olhar o Passado
 

 

sexta-feira, julho 18, 2014

Moçambique e os nossos universos paralelos

Uma não leitora - a quem muito agradeço os comentários - fez-me repensar sobre este refazer de memórias escondidas, que muitos de nós nunca partilharam até por não terem sequer com quem.
 
Miducha Duarte Silva Eu ainda não comprei o livro, embora tenha muita curiosidade, nasci na ilha, o meu bisavô, está lá enterrado e o meu Avô, também, e ouvia imensas histórias do meu pai sobre o mato, que nunca conheci, ou muito pouco, e da nossa família que também dava um livro, especialmente a do meu bisavô, Luciano Ignácio Félix (nome dado ao meu pai) que muita obra social fez em Maputo..hoje só temos uma Tia sobrevivente, mas está doente, tem 88 anos, e as memórias vão-se perder.. restam fotos, da Inhaca (em tempos do meu bisavô) parte dela, e da Ilha também as minha memórias da Ilha são bonitas mas poucas. Vivi sempre em Maputo.
 
Miducha Duarte Silva Apesar de já lá ter voltado 38 anos depois, achei que tinha vivido noutra dimensão, mas que era a minha terra na mesma!! o que foi e é muito estranho! e Adorei tudo e o ter lá estado.(ainda tenho família lá) Isto tudo para dizer que me é ainda extremamente doloroso ler, ou ouvir contar histórias sobre Moçambique ..não sei ainda porquê!!
 
 
 
As palavras desta não-leitora tocaram-me particularmente., Também para mim,  e desde que aqui cheguei há tantos anos, a nossa vida em Africa entrou numa espécie de universo paralelo mental, a que só eu tinha acesso. E era como se tivesse sido, toda ela, uma vida inventada por mim - ninguém conhecia os lugares onde eu vivera. Ninguém conhecia as pessoas que eu recordava. Ninguém sabia nada sobre o acordar e adormecer sob outros céus, sob outras estrelas iluminados por um Sol e uma Lua tão próximos da Terra. Aliás, ninguém ao meu redor mostrava ou mostrou jamais qualquer interesse por esses mundos de aquém e além mar, já que o rótulo que colectivamente nos embalava, arrumava num grande e cinzento armazém da Historia as nossas histórias da vida que ali definharam por falta de ar.
Pelos motivos que apontei, comecei a escrever Moçambique literalmente para a minha mãe se lembrar como foi. E depois, pelos motivos que também já expliquei, percebi a certa altura que aquelas crónicas avulsas, impressas em folhas A4 iam entrar no caminho da escrita, que é um caminho sem retorno. Então, esqueci-me, melhor, larguei o «eu» de agora, para evocar a vida de todos nós, sem descurar as minhas próprias mutações e a nossa vivencia mais pessoal. 
 
É assim que, neste momento, os meus próximos sabem finalmente de coisas, de lugares, de pessoas, de montanhas e rios e árvores e cidades e vilas e lugarejos, e historias de guerras e de paz, de que nem sonhavam a existência. Eles, tão alheios ao universo africano, estão em plena Viagem e estão a gostar de uma forma que nunca imaginei que gostariam.  Mais do que isso, comecei a perceber que este livro devolve foros de cidadania à minha, à nossa vida escondida, de modo que, através dele, e nada estava mais longe das minhas intenções!, exorcizei eu própria os fantasmas do olvido. A todos os que me louvam a «coragem» de me expor desta maneira, tenho de desiludir. Não foi preciso coragem. O processo tomou conta de mim - e eu esqueci-me do resto.
 
Na verdade, esta é uma historia colectiva. África está-nos no sangue e na memória, evocada ou escondida. Dos que partiram e voltaram. E dos que não tendo partido, logo achando que o assunto não lhes diz respeito, a transportam nas misteriosas estradas do sangue. Sim. No código genético português.
 
 

sexta-feira, julho 11, 2014

«Onde está o que não queres ver?»

Quando estava a escrever o meu último livro, aconteceu-me ter tido problemas nos olhos. Pequenas inflamações, que a prescrição médica, alterada por duas vezes, não estava a conseguir resolver. Foi então que, em conversa de fim de tarde, com a minha amiga Fátima Morais dona do Matchik-Tchik, um restaurantezinho na Bica onde nos reencontramos com os sabores, os temperos, os aromas da gastronomia moçambicana e muito mais do que isso, surgiram as pistas.

Rebentamento de minas
(«Arquivo electrónico», Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra)


O que é que não queres ver? perguntou ela e eu respondi que nada, era só uma alergia, e ela disse que o mundo é cheio de sinais. Os meus olhos, por exemplo, que choravam a despropósito e ardiam por coisa nenhuma, não podiam tratar-se só com as pomadas do médico, e foi por isso que voltou a perguntar o que é que não queres ver? Então, falei-lhe do livro, mostrei-lhe umas páginas - ela é moçambicana de pura raiz maconde. E ela leu, e disse que bonito, não mudava uma virgula mas... e o resto? Onde está o que não queres ver? E eu olhei por dentro e cai no poço escuro dos olhos duros dos nossos soldados a caminho e no regresso do mato das guerras, o rosto marcado de medos e agonias e desgostos, e percebi que não estava a querer olhar para eles, porque os cortara do enquadramento das minhas memórias. E depois olhei de novo e cai no poço insondável dos olhos dos inimigos, dos 'turras', que comunicavam entre si pela voz dos tambores e desapareciam e apareciam pelos matos da guerra como se o próprio chão lhes desse alento e asas e véus de segredo. E, olhando melhor, encontrei-me com os primeiros alunos de toda a minha vida, homens feitos, negros, para voltar a mergulhar nos olhos esbraseados da sua sede indomável de saber. E lembrei-me de muitas coisas mais. Coisas que doíam. Coisas que doem. Acho que chorei. Limpou-me os olhos. Voltei a ver.

E a escrever. Agora a uma maior e mais densa profundidade. Olhando de frente o que não quisera olhar. Exorcizando medos e dores e ignorância - para poder abraçar as memórias vivas no coração aberto.
 
 
 

quinta-feira, julho 10, 2014

'A roda de trás a andar p'rá frente!'

Vila Cabral, 1963-1964. As ruas eram de terra batida. Por vezes, muitas vezes, o piso tornava-se tremendamente irregular. Mesmo assim, andávamos por ali, à maluca, de bicicleta. Aos doze anos, a caminho dos treze, apesar das aulas de dança de salão com o professor que a minha mãe me arranjou, e do colarzinho de pérolas rente ao pescoço para as ocasiões especiais, eu era, ainda, a criança que saltava ao eixo nos cogumelos de metal do jardim da Pousada e a quem a atenção masculina deixava terrivelmente embaraçada.

Vila Cabral, desfile de tropas junto ao quartel
(início da década de 60)

Os soldados, por exemplo. Passavam em grupo, a falarem entre si, rindo abertamente enquanto atiravam piropos, no ir e vir do quartel. Uma vez, um deles, numa voz de urgência aflita, gritou-me quando eu passei pelo grupo, a pedalar cheia de energia:

- Ó menina, ó menina!! Olhe a roda de trás a andar para a frente!!

Sem deixar de pedalar, olhei instintivamente para trás, para perceber o que se passava com a roda, perdendo de vista o buraco que se apresentava à minha frente, onde nós, eu e a bicicleta, nos enfiámos num grande aparato, saudado pelas gargalhadas dos rapazes do camuflado.

A roda entortou, os joelhos ficaram esfolados, e a minha dignidade cobriu-se de matope. A pé, com a bicicleta à rédea, que é como quem diz, voltei para casa por aquela rua interminável, seguida pelo risos deles, a engolir a minha raiva, juntamente com lágrimas que jamais deixaria aflorarem o meu rosto em chamas. Naquele momento, odiei-os. O facto é que só gostava mesmo dos soldados em abstracto. Como quando os víamos passar em coluna rumo aos matos da guerra, para tratarem do assunto da nossa paz.

(Esta pequeno episódio não consta do livro, porque se fosse a contar tudo o que me lembro, nem mil páginas não chegavam e nenhum leitor merece).

quarta-feira, julho 09, 2014

Era uma vez Vila Cabral capital do Niassa


Para nós, era tudo muito estranho. A começar pelas distâncias incomensuráveis e pela total ausência dos marcos de referência a que, eu pelo menos, me tinha habituado, nascida e criada na cidade do Porto, tão antiga, e, agora à distância, tão populosa, sem contar com as férias anuais em Lisboa, outra cidade amor da minha vida. E sem falar no campo, sobretudo o tão familiar Douro ou o Minho,  tão explosivamente colorido, com as suas vilas e aldeias cheias de igrejas, campanários, monumentos, castelos, túmulos de santos e de reis e penedos de mouras encantadas. 

Era preciso tempo, para criar rotinas e encontrar  o encanto inesperado e fatal que todas as terras de África têm. Impossível fugir-lhe. Apanha-nos de surpresa, desarmados e nus perante a vastidão intensa, brutal, magnifica e mágica do seu chão e do seu ar, do seu céu, da sua luz, e das suas águas todas. Do seu cheiro e do grito de pássaros inventados em livros de histórias de encantar, onde também moravam serpentes e jacarés, macacos e girafas, gazelas e hipopótamos, hienas e leões, com os quais nos cruzávamos aqui, não em paginas iluminadas, mas na natureza das suas vidas naturais.

E é assim que, num mergulho no tempo breve e já tão longo da nossa vida, eu recordo os primeiros dias do resto das nossas vidas.

«Do ar, Vila Cabral[1] era um muito pequeno aglomerado urbano, que, do grande círculo da rotunda, irradiava em polígono regular, atravessado por uma enorme avenida principal. Passara de vila a cidade um ano antes, graças à iniciativa do Governador do Niassa, Coronel Costa Matos, o qual vivia no palácio, com a mulher e as duas filhas e constituía a mais alta individualidade local, quando ali nos instalámos em Outubro de 1963.


Numa represa perto, a mãe e outros professores.
Não sei quem tirou a fotografia que foi revelada pelo Senhor Castanheira
Para além do palácio do Governador, uma casa colonial muito bonita e muito bem ajardinada, a pequena urbe dispunha de umas escassas centenas de casas de habitação de pedra e cal, subitamente em número demasiado reduzido para as necessidades do crescimento demográfico, de uma inesquecível Pousada, de uma igreja, e de um cine teatro, o ABC, que passava filmes de cowboys e filmes indianos com muita regularidade, sem descurar outro tipo de programação cinéfila e da organização de festas e bailes. Para além destes marcos, havia as escolas primárias e secundária até ao primeiro ciclo; a estação dos Correios; os edifícios do governo; o hospital; o quartel; a estação de machimbombos, e do comércio habitual. O Banco Nacional Ultramarino, o talho do Senhor Cruchinho; as padarias do Senhor Garcês; o salão de cabeleireiro, barbearia e casa de fotografia e de habitação do Senhor Castanheira; a pensão Miramar; os restaurantes Planalto; e as maravilhosas lojas da Família Salvado, onde se encontrava de tudo. Sedas e brocados da China; arcas de sândalo da Índia; tecidos dos mais sofisticados aos simples de todo o lado de onde se podiam mandar vir tecidos; sapatos, carteiras, joalharia, cosmética, artigos para o lar, e o mais que se queira nomear. A cidade era servida por um aeroporto regional, mas a tão necessária e desejada linha de caminho-de-ferro que a ligaria a Nacala, só seria inaugurada alguns anos mais tarde.
Era muito longe de tudo. Para que conste, a capital do Niassa ficava e fica a cerca de 2800 km de Lourenço Marques. Mesmo para os padrões africanos onde as distâncias são genericamente reduzidas a um «é já ali» - era muito quilómetro.»
 
(adaptado de Moçambique para a mãe se lembrar como foi)


[1] A povoação, fundada em 1931, foi elevada a cidade em 23 de Setembro de 1962. O seu nome era uma homenagem ao ex-Governador José Cabral na Índia e em Moçambique durante 20 anos. Depois da independência foi renomeada Lichinga.

terça-feira, julho 08, 2014

A cidade da Beira, Moçambique, take one

A Beira, a «cidade do futuro» como lhe chamávamos então, foi uma experiência singular e uma história adiada. Ainda hoje tenho entalado na garganta aquele deslumbre a que só consegui aflorar na ponta dos dedos e em olhares cruzados, como quando ia à praia do Macútie e me perdia na contemplação do Índico. Em 1967, a cidade explodia de vitalidade, como se quisesse compensar os tempos letárgicos dos antiquíssimos pantanais, finalmente assoreados em pleno século XX, que durante séculos afastavam das suas terras insalubres os colonos menos afoitos.

Hotel Capri, foto:Augusto Ferreira.

Só que entretanto, tive de voltar a Tete. Motivos pessoais e familiares, de força maior. Os estudos ficaram adiados, a Beira ficou adiada e...tudo o resto, o liceu, os amigos e amigas que fugazmente criei, desapareceram. Porém, quando comecei a reviver a episódica passagem, uns escassos meses, pela segunda cidade de Moçambique, encontrei mais do que esperava. Para começar, os quotidianos de algum modo surreais que me acolheram, no cenário de uma casa de amigos de amigos de conhecidos da nossa mãe, para onde fui, por assim dizer, «desterrada», a fim de que a minha cândida adolescência não fosse contaminada pela sedução diabólica daquela urbe tão sedutora.
Passagem breve. Muito breve. Nunca imaginei que deixasse tão forte recordação. Depois...

  

«Mais uma vez, o chão desaparecia sob os meus pés, como se, na sua inconstância geográfica, o meu mundo se estivesse a transformar numa espécie de caleidoscópio partido e fantasmático. Ou num imenso e labiríntico corredor cheio de portas fechadas por onde eu deambulava sozinha num sobressalto de pássaro engaiolado. Nessa época ouvia Amália e chorava, ouvia José Afonso e chorava, ouvia fados de Coimbra e chorava, ouvia Adriano Correia de Oliveira e chorava. Às escondidas, evidentemente. E pensava que, «se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa, no desenho que fizesse…», talvez eu encontrasse a chave de um mundo mais imutável do que aquele por onde me deslocava. Um mundo com um espaço a que pudesse chamar meu e onde me fosse possível, por privilégio e sem perder as asas, ganhar raiz.
Só que, e em vez da gaivota, chegou o medo.» (em Moçambique para a mãe se lembrar como foi».

sexta-feira, julho 04, 2014

No lago dos teus olhos

Havia uma luz que se apagou no lago dos teus olhos porque os rios do espanto já não correm para a cisterna da tua alma que foi de poeta e viajante.
E o teu coração amortalhou-se no cinzento dos dias iguais.
Quando soube do teu exilio fiquei tão triste e tu nem deste por nada.


Carolus-Duran, O Homem adormecido (1861), Palais des Beaux-Arts de Lille

quinta-feira, julho 03, 2014

«Testemunho histórico fabuloso e invulgar»

Pela segunda semana consecutiva, Moçambique para a mãe se lembrar como foi ocupa o Top de não ficção das livrarias Bertrand. Está em segundo lugar. E é uma grande alegria saber que leitores e leitoras, por todo o país, estão a mergulhar numa viagem de ida e volta aos nossos dias de ontem, em tempos do nunca mais. Para que a memória, a nossa, não se perca de vez.

Via facebook, mais duas, entre as muitas apreciações que tenho recebido:

«Jorge Sequeiros Um testemunho histórico fabuloso e invulgar, na primeira pessoa. Um romance apaixonante. Uma biografia belissimamente escrita. Este livro é tudo isto e mais
 
«Carlos Mota Silva Alves Eu bem disse, há uns dias atrás, que após maior divulgação, o livro subiria no Top pois a sua leitura prende-nos cada vez mais à medida que avançamos a caminho do final. É uma história muito bem delineada e enquadrada na época em que foi vivida e que, a quem como eu, viveu em Moçambique e, em determinada altura, na mesma cidade - Vila Cabral - faz recordar tempos idos que deixam saudades. Parabéns à autora
 



Foi esse, à medida que o escrevia,  um dos sentidos do livro - recolher memórias, em torno do registo muito pessoal da biografia, dando-lhe sentido histórico, na curta duração, mas também na longa duração. Quem éramos, como fomos, que terra maravilhosa era aquela, que vida se vivia em Moçambique, quer em teatros de guerra quer em cenários de paz? Que histórias se ocultavam na vastidão das suas terras? Que nomes retivemos do seu esplendor geográfico?

Como vivemos mais ou menos em muitos lugares, e a memória ainda não me prega muitas partidas; e como há registos possíveis de serem consultados e pessoas que se disponibilizam e disponibilizaram a ajudar o meu trabalho com as suas próprias recordações, o puzzle foi sendo montado.

Em todo o caso, e face aos meus propósitos iniciais, o percurso acabou por me levar mais longe e mais fundo do que imaginei. Fez-me olhar para direções outras. Fez-me procurar outros cenários e outras gentes muito próximas, mas, e naqueles tempos, muito fora das minhas, das nossas, ilhas de realidade. Obrigou-me a tentar perceber. Deu-me muito trabalho, alegrias, sobressaltos e algum desgosto. E uma enorme gratidão, pois permitiu-me trazer à tona o meu amor por um país, Moçambique, e por um continente, África. Um amor imutável.

Mas afinal, é esse o propósito da Viagem.