Quando estava a escrever o meu último livro, aconteceu-me ter tido problemas nos olhos. Pequenas inflamações, que a prescrição médica, alterada por duas vezes, não estava a conseguir resolver. Foi então que, em conversa de fim de tarde, com a minha amiga Fátima Morais dona do Matchik-Tchik, um restaurantezinho na Bica onde nos reencontramos com os sabores, os temperos, os aromas da gastronomia moçambicana e muito mais do que isso, surgiram as pistas.
Rebentamento de minas («Arquivo electrónico», Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra) |
O que é que não queres ver? perguntou ela e eu respondi que nada, era só uma alergia, e ela disse que o mundo é cheio de sinais. Os meus olhos, por exemplo, que choravam a despropósito e ardiam por coisa nenhuma, não podiam tratar-se só com as pomadas do médico, e foi por isso que voltou a perguntar o que é que não queres ver? Então, falei-lhe do livro, mostrei-lhe umas páginas - ela é moçambicana de pura raiz maconde. E ela leu, e disse que bonito, não mudava uma virgula mas... e o resto? Onde está o que não queres ver? E eu olhei por dentro e cai no poço escuro dos olhos duros dos nossos soldados a caminho e no regresso do mato das guerras, o rosto marcado de medos e agonias e desgostos, e percebi que não estava a querer olhar para eles, porque os cortara do enquadramento das minhas memórias. E depois olhei de novo e cai no poço insondável dos olhos dos inimigos, dos 'turras', que comunicavam entre si pela voz dos tambores e desapareciam e apareciam pelos matos da guerra como se o próprio chão lhes desse alento e asas e véus de segredo. E, olhando melhor, encontrei-me com os primeiros alunos de toda a minha vida, homens feitos, negros, para voltar a mergulhar nos olhos esbraseados da sua sede indomável de saber. E lembrei-me de muitas coisas mais. Coisas que doíam. Coisas que doem. Acho que chorei. Limpou-me os olhos. Voltei a ver.
E a escrever. Agora a uma maior e mais densa profundidade. Olhando de frente o que não quisera olhar. Exorcizando medos e dores e ignorância - para poder abraçar as memórias vivas no coração aberto.
E a escrever. Agora a uma maior e mais densa profundidade. Olhando de frente o que não quisera olhar. Exorcizando medos e dores e ignorância - para poder abraçar as memórias vivas no coração aberto.
[Partilhado de Moçambique para a mãe se lembrar como foi]
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