Um extracto de Xerazade - a última noite - um romance que quase se foi escrevendo a si próprio, num deslindar de memórias, aforismos e lendas que uma mulher, em jeito de despedida, vai contando ao seu amante que, inconformado, se recusa deixá-la partir.
[...] em Manuela Gonzaga, 2015, Xerazade - a última noite, Lisboa, Bertrand, pp. 106-109.
Europa e o Touro, Museu de Tarquínia, c. 480 AC |
Enquanto isso, eu penso no meu Touro do Céu
[...]
O que sucede às
palavras quando o som foge delas? O que sucede à luz quando todas as suas
partículas escolhem ondular pelo infinito mar do devir? E nesse vaguear
marinho, em que matriz encaixar os nossos desejos e apegos? Gostava de
certezas, neste momento em que a única certeza é o incerto acontecer. O pior é
que só me veem à memória toadas infantis, cantilenas de embalar e histórias do
tempo em que os animais falavam e só crianças ou tolos entendiam o que eles
diziam. Caminhámos tanto, e afinal o que nos resta é um punhado de canas, um
punhado de histórias e um punhado de pérolas soltas?
Diz-me se isto faz
algum sentido.
Sou de um tempo em que
fadas e anjos eram quase da mesma família. Sou de um tempo em que, entre fadas
e anjos, se estendia uma muralha de fogo e um redemoinho de anátemas. Sou do
tempo em que fadas e anjos jaziam, lado a lado, num sepulcrário, o mesmo,
atulhado de fantasias quebradas e arrumadas a eito. Podíamos visitá-los como
quem percorre um museu, ou a cave de um teatro barroco, precioso mas entretanto
abandonado, atulhada de adereços inúteis, sem uma única referência de como,
quando e para quê foram usados. Sou de um tempo em que já nem se falava de
fadas, nem de anjos. Sou de um tempo em que inventámos uns e outros, à medida
que eles próprios nos inventavam também.
É a memória um jogo?
O meu Touro abriu as
asas. Céus, como ele ri! Amor, muito antes de Creta, entre mulheres e touros
existe uma aliança. As mulheres não ferem o touro, brincam com ele. As mulheres
não matam o touro. Amam-no. Que algumas reclamem para si a arena, a espada, a
verónica, o cavalo e as bandarilhas, prova apenas o quanto nos afastamos da
essência. Do fruto, sobraram as cascas. A semente perdeu-se há muito. Do gesto,
secreto, resta, em mímica adulterada, a profanação de um mistério transformado espectáculo,
e sem sentido algum. A não ser o mais primário de todos os sentidos. O prazer
de cheirar e ver correr sangue. Muito sangue.
Desde que não seja o
nosso.
Lembra-te do
tauróbolo. Estivemos juntos em São Clemente, Roma, só que dessa vez nenhum de
nós se lembrava. As imagens que guardamos desses dias, tiradas com uma câmara
de plástico comprada numa loja de souvenires perto da Fontana de Trevi,
mostram-nos de mão dada diante da basílica erigida sobre a primitiva igreja
que, nos primórdios do Cristianismo veio encapsular um Mithraeum[1].
Imagina: Cristo e Mitra reunidos no mesmo espaço. Religião e arqueologia,
camada por camada, século após século, andar por andar. Descemos até às
entranhas.
Vimos tudo – e não
vimos nada.
Mas o mistério persiste
na cave outrora vedada a mulheres. Amor, desta viagem tens de te lembrar, foi
tão recente. Nós os dois, como se nada fosse, rindo de tudo, até das tuas
máquinas fotográficas que as crianças nos roubaram, estivemos num dos teatros
do deus oriental que nasceu há milhares de anos a 25 de Dezembro para salvar a
humanidade. Trezentos anos antes do nascimento do Menino, já Mitra era adorado
desde a Índia ao mundo mediterrâneo. Matara o touro por amor da humanidade e o
rito repetia o misterioso ciclo. Às ocultas, na sacralidade do espaço
iniciático onde o touro era degolado para o seu sangue cair sobre o neófito. No
Mithraeum
de São Clemente não rimos.
Mas também não entendemos.
O que sobrou do velho
culto? Um arremedo. O touro, a arena e um virtuoso. O Matador que demanda assistência e bebe aplausos, na encenação de
uma morte precedida por uma espécie de bailado em pontas, gestos largos, ondular
de capote, e muitos ferros cravados num corpo palpitante, perante uma
assistência que respira o cheiro do medo e rejubila com a agonia, e reclama a
estocada final. Mas antes, é preciso provocar, magoar, perseguir sem descanso. No
lugar do círculo, sob a claridade estonteante do meio-dia, o toureiro
encomenda-se à Virgem, cujo filho se ofereceu em holocausto, tomai o meu corpo,
tomai o meu sangue, como símbolo de Redenção e aliança. Que ironia. Sob a pretensa
invocação de um arquétipo do herói, a larva transmuta-se em pequeno tiranos
enfeitados de sangue e joias falsas.
Pensa: porque motivo,
na arena, o macho se traveste, meneando as ancas, as pernas desenhadas nos
collants cor-de-rosa, as nádegas evidenciadas no fato brilhante, justíssimo,
resplandecente de luces, citando o outro
macho, em trejeitos de mulher dama, chamando-lhe bonito, chamando-lhe belo? É
para juntar mais um engano ao enredo de enganos. O touro confia na mulher. A
mulher ama o touro. Deixa-se levar por ele, sobre as águas.
Portanto, o segredo da
arena já não é segredo nenhum. São estes homens bamboleando-se como fêmeas que
incitam o touro para o magoar, e para serem aplaudidos pela sua morte a que chamam gloriosa
para se distinguirem do magarefe que não quer palmas para nada, porque sabe que
matar o touro é apenas um trabalho sujo pelo qual lhe pagam. Porque o fazem? Porque
já esqueceram. Pensa nas dançarinas em Creta e nos curetes. Recorda Zeus e
Europa. Reflecte sobre o crime de Minos, ele próprio filho de um touro, o Touro
sagrado. E a vergonhosa maldição de Pasífae que gerou o touro, o Minotauro. Recorda
Indra, o que fez do trovão seu aliado. Tu sabes. Eu sei. Alguns ainda recordam.
Só eles não sabem nada.
Enquanto isso, eu
penso no meu Touro do Céu.
―Estás
a delirar. Abre os olhos, querida.
―Naqueles
dias, sabíamos que é preciso nascer para vencer a morte.
―
Não quero saber de grutas, nem de touros, nem de mortes. Estou aqui, ao teu
lado. Não te esqueças disso.
[1] Originalmente, um santuário ao deus Mitra, cujo culto vindo
da Ásia Central, se veio a tornar um dos mais importantes no império romano,
até ser abolido em 391 DC.
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