domingo, março 15, 2015

Enquanto isso, eu penso no meu Touro do Céu

Um extracto de Xerazade - a última noite - um romance que quase se foi escrevendo a si próprio, num deslindar de memórias, aforismos e lendas que uma mulher, em jeito de despedida, vai contando ao seu amante que, inconformado, se recusa deixá-la partir.

Europa e o Touro, Museu de Tarquínia, c. 480 AC
 
Enquanto isso, eu penso no meu Touro do Céu
[...]
O que sucede às palavras quando o som foge delas? O que sucede à luz quando todas as suas partículas escolhem ondular pelo infinito mar do devir? E nesse vaguear marinho, em que matriz encaixar os nossos desejos e apegos? Gostava de certezas, neste momento em que a única certeza é o incerto acontecer. O pior é que só me veem à memória toadas infantis, cantilenas de embalar e histórias do tempo em que os animais falavam e só crianças ou tolos entendiam o que eles diziam. Caminhámos tanto, e afinal o que nos resta é um punhado de canas, um punhado de histórias e um punhado de pérolas soltas?

Diz-me se isto faz algum sentido.

Sou de um tempo em que fadas e anjos eram quase da mesma família. Sou de um tempo em que, entre fadas e anjos, se estendia uma muralha de fogo e um redemoinho de anátemas. Sou do tempo em que fadas e anjos jaziam, lado a lado, num sepulcrário, o mesmo, atulhado de fantasias quebradas e arrumadas a eito. Podíamos visitá-los como quem percorre um museu, ou a cave de um teatro barroco, precioso mas entretanto abandonado, atulhada de adereços inúteis, sem uma única referência de como, quando e para quê foram usados. Sou de um tempo em que já nem se falava de fadas, nem de anjos. Sou de um tempo em que inventámos uns e outros, à medida que eles próprios nos inventavam também.

É a memória um jogo?

O meu Touro abriu as asas. Céus, como ele ri! Amor, muito antes de Creta, entre mulheres e touros existe uma aliança. As mulheres não ferem o touro, brincam com ele. As mulheres não matam o touro. Amam-no. Que algumas reclamem para si a arena, a espada, a verónica, o cavalo e as bandarilhas, prova apenas o quanto nos afastamos da essência. Do fruto, sobraram as cascas. A semente perdeu-se há muito. Do gesto, secreto, resta, em mímica adulterada, a profanação de um mistério transformado espectáculo, e sem sentido algum. A não ser o mais primário de todos os sentidos. O prazer de cheirar e ver correr sangue. Muito sangue.

Desde que não seja o nosso.

Lembra-te do tauróbolo. Estivemos juntos em São Clemente, Roma, só que dessa vez nenhum de nós se lembrava. As imagens que guardamos desses dias, tiradas com uma câmara de plástico comprada numa loja de souvenires perto da Fontana de Trevi, mostram-nos de mão dada diante da basílica erigida sobre a primitiva igreja que, nos primórdios do Cristianismo veio encapsular um Mithraeum[1]. Imagina: Cristo e Mitra reunidos no mesmo espaço. Religião e arqueologia, camada por camada, século após século, andar por andar. Descemos até às entranhas.

Vimos tudo – e não vimos nada.

Mas o mistério persiste na cave outrora vedada a mulheres. Amor, desta viagem tens de te lembrar, foi tão recente. Nós os dois, como se nada fosse, rindo de tudo, até das tuas máquinas fotográficas que as crianças nos roubaram, estivemos num dos teatros do deus oriental que nasceu há milhares de anos a 25 de Dezembro para salvar a humanidade. Trezentos anos antes do nascimento do Menino, já Mitra era adorado desde a Índia ao mundo mediterrâneo. Matara o touro por amor da humanidade e o rito repetia o misterioso ciclo. Às ocultas, na sacralidade do espaço iniciático onde o touro era degolado para o seu sangue cair sobre o neófito. No Mithraeum de São Clemente não rimos.

Mas também não entendemos.

O que sobrou do velho culto? Um arremedo. O touro, a arena e um virtuoso. O Matador que demanda assistência e bebe aplausos, na encenação de uma morte precedida por uma espécie de bailado em pontas, gestos largos, ondular de capote, e muitos ferros cravados num corpo palpitante, perante uma assistência que respira o cheiro do medo e rejubila com a agonia, e reclama a estocada final. Mas antes, é preciso provocar, magoar, perseguir sem descanso. No lugar do círculo, sob a claridade estonteante do meio-dia, o toureiro encomenda-se à Virgem, cujo filho se ofereceu em holocausto, tomai o meu corpo, tomai o meu sangue, como símbolo de Redenção e aliança. Que ironia. Sob a pretensa invocação de um arquétipo do herói, a larva transmuta-se em pequeno tiranos enfeitados de sangue e joias falsas.

Pensa: porque motivo, na arena, o macho se traveste, meneando as ancas, as pernas desenhadas nos collants cor-de-rosa, as nádegas evidenciadas no fato brilhante, justíssimo, resplandecente de luces, citando o outro macho, em trejeitos de mulher dama, chamando-lhe bonito, chamando-lhe belo? É para juntar mais um engano ao enredo de enganos. O touro confia na mulher. A mulher ama o touro. Deixa-se levar por ele, sobre as águas.

Portanto, o segredo da arena já não é segredo nenhum. São estes homens bamboleando-se como fêmeas que incitam o touro para o magoar, e para serem aplaudidos pela sua morte a que chamam gloriosa para se distinguirem do magarefe que não quer palmas para nada, porque sabe que matar o touro é apenas um trabalho sujo pelo qual lhe pagam. Porque o fazem? Porque já esqueceram. Pensa nas dançarinas em Creta e nos curetes. Recorda Zeus e Europa. Reflecte sobre o crime de Minos, ele próprio filho de um touro, o Touro sagrado. E a vergonhosa maldição de Pasífae que gerou o touro, o Minotauro. Recorda Indra, o que fez do trovão seu aliado. Tu sabes. Eu sei. Alguns ainda recordam. Só eles não sabem nada.

Enquanto isso, eu penso no meu Touro do Céu.


―Estás a delirar. Abre os olhos, querida.

Naqueles dias, sabíamos que é preciso nascer para vencer a morte.

― Não quero saber de grutas, nem de touros, nem de mortes. Estou aqui, ao teu lado. Não te esqueças disso.


 [...] em Manuela Gonzaga, 2015, Xerazade - a última noite, Lisboa, Bertrand, pp. 106-109.



[1] Originalmente, um santuário ao deus Mitra, cujo culto vindo da Ásia Central, se veio a tornar um dos mais importantes no império romano, até ser abolido em 391 DC.
 

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