sexta-feira, junho 24, 2022

Ele queria saber que perfume eu usava


"Vou consoar com uma mulher da vida. Levo peru, rabanadas, fruta cristalizada, espumante. Até lhe comprei um presente. Uma água-de-colónia.”

  

 Há muito anos, a revista CARAS encomendou-me um Conto de Natal: eu teria total liberdade. Tomei demasiado à letra a amplitude dessa "liberdade" criativa e recordei, romantizando um bocado, um episódio dos tempos do jornalismo romântico quando se partia para a reportagem como quem vai para um safari sem utras armas que não as da palavra e da atenção plena, feita de cumplicidades e amor. Uma narrativa que, reconheço, é de uma  inconveniência total para o meio de comunicação a que se destinava. Mas a editora e as chefias de redação da revista não comentaram, pelo que até foram muito delicadas. E felizmente enterraram este conto num suplemento publicitário, daqueles que ninguém lê porque são só para vermos as imagens. Sou-lhes muito grata pela subtileza. 

Partilho o conto.  



“DESTA VEZ, LEVO EU O PERÚ”

CONTO

  Por Manuela Gonzaga

Ele queria saber que perfume eu usava. Eu disse, depende e não uso perfumes, só águas-de-colónia. Às vezes, misturo. Não sejas chata, disse ele, dá-me dois ou três nomes, é para um presente de Natal. Nessa época, era relativamente fiel ao Miss Dior, ao Dioríssimo, e outro que não me lembro. E a uma preciosidade, L'Interdit by Givenchy, “o original, que a Audrey Hepburn criou” como explicou o amigo que mo ofereceu, comissário de bordo da TAP. Faltavam três dias para a festa da família e ele não tinha nenhuma. Tinha várias ex-mulheres e uma porção de filhos. Carlos Alfredo. Grande coração. Na época, os jornais eram muito românticos e ser repórter implicava meter as mãos no sangue e nas tripas do mundo. Ele era dessa tribo. A 24 de Dezembro, quando toda a gente se preparava para voltar para casa mais cedo, ele e uns quantos náufragos de famílias à deriva, ofereciam-se para as reportagens temáticas. O Natal na prisão. Nas urgências de um hospital. A Consoada na Sopa dos Pobres. Coisas assim. Três anos antes, tinha ido para o Linhó e até ficou amigo de um recluso. No ano seguinte, já com este em liberdade, acompanhou-o na sua qualidade de ladrão, produzindo uma emocionante reportagem que lhe ia custando a liberdade. O outro convencera-o a ficar à porta, “a controlar”, enquanto esvaziava o frigorífico de uns ricaços do Restelo que tinham ido passar a quadra ao Rio de Janeiro. “Assobias se houver crise. É rápido. Bifes, marisco, vinho, guloseimas para os putos.” O pior é que, agarradas aos comes e bebes, tinham vindo pulseiras, anéis, relógios, colares, no valor de uma pipa de massa. Carlos Alfredo defendeu o segredo profissional com unhas e dentes, mas acabou indiciado como cúmplice. Salvou-o a boa vontade do ladrão, que devolveu as jóias.

Este ano, pensara noutra temática: “Vou consoar com uma mulher da vida. Levo peru, rabanadas, fruta cristalizada, espumante. Até lhe comprei um presente. Uma água-de-colónia.” O chefe de redação encolheu os ombros:

⸺ Pagas do teu. E vê lá se não levas uma coça por conta. Parece-me tão… esquisito.

Na edição de 26 de Dezembro, porém, a reportagem dele não constava. Dia 27, quando voltei ao jornal, soube que tinha metido folgas atrasadas e que não devia aparecer antes do fim do ano. Ao almoço, um camarada de redacção ⸺ nunca se dizia “colegas”, porque “colegas são as putas”⸺ contou a história. Tinha-o encontrado, nessa desolada madrugada. A mulher da vida recrutada no Intendente, começou por fazer uma cena. Depois lá foi com ele para uma pensão, mas sempre a resmungar, “filho, tu tens uma tara qualquer”. Ele tratou de tudo. Abriu a garrafa, juntou as mesinhas de cabeceira e cobriu-as com uma toalha. Até levava velas: “Vai daí, ela desatou a beber e… apagou”. Rimos muito. E ele sem aparecer. Dia 30, uma rapariga foi ao jornal, à sua procura. Cara angulosa, pele branca e desmaiada, casaco pelo de coelho, saia comprida, roxa, botas cambadas. Olhos de quem tem 527 anos. Atendia-a eu. “Família?”, perguntei. Ele tinha tantas ex-famílias…

⸺ Amiga – respondeu ela. E acrescentou: ⸺ quer-se dizer.

Abreviando, era a tal da consoada:

⸺ Um homem tão bom. Tão delicado, poças. Deu-me um perfume. Deixou um monte de dinheiro. E eu, em jejum. Dois copitos e faz de conta que é o meu homem, faz de conta que somos uma família. Mais um copo. Tudo tão porreirinho, coiso e tal. Faz de conta. Tirei os sapatos, doíam-me os pés…

Calou-se, o rosto subitamente cor-de-rosa, olhos aflitos e envergonhados. Depois acrescentou:

⸺ Lixei-lhe o trabalho, não foi? ⸺ Estendeu-me a mão, com um papel:⸺ O meu número de telefone. Ele que apareça no Ano Novo. Conto-lhe a vida toda. Até pode escrever um livro!

Acompanhei-a à escada. Começou a descer, depois virou a cara para cima. Sorriu, era quase jovem e inocente outra vez:

⸺– Desta vez, levo eu o peru.

 

 

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