Aquela mulher nua a
correr por uma praia de fim de mundo, a criança que nada em seu ventre, a
gaivota que grita no ar parado da manhã, o monstro insone sob as águas serenas,
lá tão no fundo que ninguém suspeita da sua existência a não ser os deuses que
o criaram e lhe perderam o rasto numa refrega olímpica em que todos perderam
alguma coisa. Aquele velho que foge da gárgula de pedra da igreja, descobrindo aterrado que no templo onde pensava ir encontrar a
paz do fim dos seus dias, as estátuas, do bem e do mal, tinham todas vida. Aquela família que
foge pela estrada em chamas. Aquela dança na sala dos espelhos, onde todos parecem voar. O navio
descomunal marcado de naufrágio, de onde os passageiros sem destino nem
salvação se atiram para as águas, ou para as chamas de uma caldeira,
enquanto nós, amor, no último momento, somos erguidos por um vento fantástico
que nos aspirou para dentro de outro sonho. Aquela floresta de sinais
equívocos, porque nela todas as árvores se movem. Os animais que a povoam. Todos.
E o palácio sepultado sob as
areias de tantos séculos, onde nós os dois, amor, encontramos a tapeçaria das
nossas vidas, uma infinidade de rostos que são os nossos rostos ao longo das eras, usados em
vidas longas ou curtas, de histórias tão díspares. A casa do
pão, onde me escondi do peregrino, e onde a mulher de braços fortes, colo de mãe e cheiro a
farinha nova, me abraçou chorando de pena por eu não me lembrar dela que se
recordava de mim em todas as nossas vidas passadas e futuras. A criança a rir
no chão de malmequeres e relva cortada. O menino a chorar de solidão num berço
que se embala sozinho. Os animais, as plantas, as estrelas, os sóis e os
céus. As histórias completas, esboçadas, esquecidas, transportadas em sonhos
acordados, adormecidos, ou arrumadas em lado nenhum. A mulher louca, a mulher loura, a mulher
má, a mulher morena. A nova e a velha. A rainha e a mendiga. A bonita, a feia,
a medonha, e a que de tão banal nunca ninguém lhe recorda rosto ou nome. O
homem forte, o homem fraco, o homem bom e o homem mau, o grande e o pequeno, o
oriental e o ocidental. O negro. A negra. A multidão, as multidões. Os jovens,
as crianças, os poderosos e os famintos, os santos e as santas e os demónios, e
os simplesmente esquecidos de tudo – que são quase todos.
Essas, essas, isso, aquilo,
sou eu. És tu. Somos nós. Somos nós, amor. E ao sermos nós, somos mais do que
eu e tu, somos tudo no efervescente mar da eternidade.
Não perguntem ao criador qual é o seu sexo.
3 comentários:
Cara Manuela
Tenho vários escritores mulheres de que gosto: Jumpha Lahiri,Arundhati Roy, Elisabeth Gilbert, Rosa Lobato Faria e, claro, Manuela Gonzaga. Todas me surpreendem por transmitirem de uma forma diferente uma qualquer realidade ou vivência. São efectivamente diferentes de um homem, mais misteriosas (por vezes impenetráveis) e mais audazes (e sinceras) nos sentimentos.
António
Obrigada, A. por incluir o meu nome nessa lista de preferências, que muito me honra. Mas o que priveligia nas pessoas que selecionou é a qualidade da sua escrita. A identidade de género é apenas um dos multiplos marcadores de um ser humano. Eu, pessoalmente, sinto-me guethizada com o rõtulo. Ninguem fala da escrita masculina. Porém, há escritoras que nao só subscrevem essa identificaçao como a enaltecem. Se calhar nem é importante... Abraço!
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