sexta-feira, novembro 29, 2013

Ai coração, coração

Recordando Mozzaic, sempre perto mas de momento um bocadinho longe. Em LV.

Ela atravessou a noite medonha num desespero de partir tudo. Ela partiu tudo. Ela cruzou a madrugada pisando sobre os cacos e o caos da sua cozinha. Ela amanheceu sofrendo, mas inteira,  sentada e exausta no único canto onde podia sentar-se sem se ferir nos pratos, nos copos, nos azulejos, nas chávenas, nas travessas e nas terrinas, nas malgas, nas jarras.

Tudo partido, escavacado, destruído. Tudo em pedaços.

O percurso artístico dela - um dos, é tão multifacetada que de tudo cria e recria - começou assim. Nesse dia que sem pausa se fez tarde e noite, refez as paredes da cozinha em mosaicos lindíssimos que lhe conferiram alma,  reconfigurando o absurdo da sua história. Reunindo os pedaços partidos em desenhos e famílias de formas e cores. 

Desde então, o seu toque alquímico transmuta todos os espaços que habita. De Setúbal voou para Glastonbury, dali mudou-se para outra pequena cidade no sul de Inglaterra, de lá partiu para Los Angeles e finalmente aterrou em Las Vegas, onde, às portas do deserto, recriou, uma vez mais, o seu pequeno e mágico oásis.

É que brincaram, sem saber, com o coração dela, quando ela era bem pequenina. E por isso, ficou-lhe o molde do coração partido. Depois cresceu e tudo na vida dela se adequava a esse molde, porque nós imprimimos a nossa matriz, o molde de origem, na irrealidade que nos circunda. E com ela, foi assim até ao dia em que escavacou a cozinha da casa onde vivia, porque e mais uma vez lhe tinham partido o coração, e nessa violência catártica, nesse descer ao fundo do poço, nesse soltar de raivas e dores e fúrias e desesperos, encontrou-se com aquela de si que era a demiurga. A criadora. A feiticeira, a sábia, a velha, a mais velha, a criança, a mais criança.

A partir de então, começou a recompor o mundo à sua volta. A imprimir-lhe um molde novo, redesenhado por si. E é isso que tem vindo a fazer da forma mais espantosa, delirante e errática que se pode imaginar. Juntando à sua volta os mais impensáveis grupos de pessoas, aproximando mundos paralelos, respigando do rejeitado lixo verdadeiros tesouros que, renovados, lhe saem das mãos com novo fôlego, promovendo culturas, partilhando amor e amores e causas justas. Sem máscaras de espécie alguma.

Por vezes, ainda parte tudo, mas o tudo que parte é muito pouco, porque ela está cada vez mais inteira.


Que molde é esse? É o tesouro escondido que só encontramos se mergulharmos em nós, com carácter de urgência. É que todos somos demiurgos, deuses esquecidos da nossa própria divindade. Por vezes, uma bênção disfarçada de maldição, uma tragédia ou uma fulgurante alegria, ao quebrar-nos todas as certezas do incerto viver, recorda-nos a origem adormecida. E acorda-nos se quisermos realmente acordar. Vivamos, pois. De coração aberto a todos os ventos. Se não vivermos assim, não vivemos.


créditos da imagem: Chaos
 

terça-feira, novembro 26, 2013

Universos paralelos

Chegaram ao fim as minhas oficinas de escrita Elegias do amor e do ódio provavelmente as mais intensas e duras. Aliás, houve desistências muito honrosas, o que quer dizer alguma coisa.

Porém, os textos que emergiram, entre risos e lágrimas e muitas perplexidades, são outras tantas portas de entrada e de saída dos nossos mundos de ontem, com o poder que o agora nos confere. E foram, são, textos que deixaram os autores/as extasiados pelo percurso percorrido, pela libertação que a palavra permitiu e pelas chaves todas que trouxeram consigo.

A próxima oficina faz uma pausa nas autobiografias e propõe uma viagem. A mundos paralelos. Vai ser uma delicia. Come on, people, let's have some fun. Real fun. Ou há outra forma de viver?

segunda-feira, novembro 25, 2013

As mãos de Fátima

Ela perguntou-me: o que guardas no silêncio entre as palavras? Porque é o não-dito que me falta e que te falta. Depois, pousou as suas belas mãos de dedos escuros sobre o tampo escuro da mesa e deixou-as ali como se fossem pássaros que tivessem acabado de chegar de muito longe. As belas mãos da minha amiga Fátima.

Noite fria de Lisboa de muito límpido luar. A sala quente, animada, aberta sobre a rua ingreme. As conversas em várias línguas. O par, ao nosso lado, trocando beijos porque ao lado deles, de volta deles, não havia ninguém. Só a noite deles.

Quando o copo cheio ficou vazio, entendi.

O que guardo, ainda não sei bem. O que está por dizer, já conheço. Agora, é voltar atrás mais uma vez. E arrostar com aquela vastidão e plenitude que nos devorava a alma. Disso, lembro-me. E da sensação de desamparo e maravilha perante a imensidão da terra e do mar, e dos lagos e dos rios, e da minha estranheza de estranha, e da minha ignorância de ignorante. É que, pelos menos nós, andávamos dentro de gaiolas cuja porta só se abria de improviso durante um tempo tão incerto, que nunca chegava para percebermos que estávamos livres, nem para sentir andávamos presos.

Tenho de voltar aí. Preciso de encontrar a palavra certa para fazer a viagem.

De ida e de volta.
 

domingo, novembro 24, 2013

Cumprindo meu calendário de criação

Há um tempo de amarrar a palavra ao texto pré-concebido e há outro em que é a palavra que nos leva, sem amarras, pelo oceano do verbo, pela floresta do sem fim. As duas navegações são tributárias de um só destino. Mas enquanto a segunda é dádiva, bênção maior, embriaguez e desmesura, a primeira é serviço obrigatório ao serviço do misteriosíssimo calendário da criação. Eu cumpro. Mas sofro minhas nostalgias que abrem sulcos no meu respirar de hoje, de ontem e de amanhã.

sábado, novembro 23, 2013

Carpe diem

Ás vezes a única maneira de entender o quadro é saltarmos para fora dele e olhar o desenho de fora. Dizem, ah tu não ligas nada, tu não queres saber. Digo: é por querer saber, é por ligar tudo, que tenho de ficar mais longe. Menos ruído e infinitamente menos confusão, porque a Torre de Babel desaparece na cacofonia das cores de uma pintura esborratada, que assim se apresenta sobre outra luz, com todo um outro desenho. Não é menos assustador. É simplesmente mais solitário e mais completo. A seguir, o tempo recorda que tudo isto se passou assim, desta mesma maneira, noutro palco, com outros cenários, os mesmos actores, roupas diferentes, regras distintas em cada um desse desenrolar do drama e da comédia da vida. Porquê? Porque há um esforço constante, aturado, e feroz, para se matar a memória. É essa a única, a real tragédia. Mas a seguir, até o medo se esfuma na areia do tempo, que nos recorda a impermanência tão perene do ser.


 

terça-feira, novembro 12, 2013

Se uma gaivota viesse

Fala-se sempre nos cheiros quando se evocam os tempos pretéritos. O perfume dos morangos no tempo dos morangos, no tempo em que os morangos tinham perfume, e o cheiro dos lírios e dos gladíolos, por exemplo, levam-me direitinha ao Porto da minha infância. E há perfumes que acordam histórias de vida, e tempos e lugares e pessoas,

Mas a música é mais do que a banda sonora dos tempos. É um meio de transporte alado aos nossos dias de ontem. Ouço alguns fados da Amália, e estou diante do rio Zambeze, a olhar para as suas águas escuras e densas, que nesse tempo, atravessávamos no batelão do Matundo, rumo ao Moatize, por exemplo. Ouço a «Menina dos Olhos Tristes» na voz de Adriano Correia de Oliveira ou José Afonso, e volto a Vila Cabral, que já nem existe no mapa com esse nome, agora é Lichinga, e dali sigo até ao Lago Niassa e revejo-me criança nos doze anos que não chegavam para me fazer sentir de forma alguma a «senhorinha» que supostamente deveria começar a tornar-me, e que corria para a água com vontade de gritar de alegria. E ali fico e aqui estou, em recordações à flor da pele, atónita de espanto perante o esplendor da paisagem africana que me entrou nas veias, doce veneno de que nunca, jamais, me quererei libertar.

Ouço Fernando Tordo e aterro em Luanda. Ouço Paulo de Carvalho e há gritos de alegria à minha volta e lágrimas a correr pelos rostos de muitos. Havia cavalos à solta no mar da liberdade, havia poemas de amor, laranjas amargas e doces, no pleno azul dos dias novos.


Nas minhas viagens no tempo, nos últimos tempos, é pela música que embarco. As palavras vêm depois. Agarradas a elas, as imagens, os sons, as cores, os cheiros. Retalhos de vidas nossas.  

quarta-feira, novembro 06, 2013

Angola aqui e nós lá

Ontem, cá em casa, a noite foi profundamente africana. Angola aqui e nós lá. Que fabuloso cruzar de histórias, antigas e recentes. Navegar é preciso. Recordar, acorda porque acordados vivemos sonhos antigos e futuros. Depois rimos tanto, como se há tanto tempo tivesse sido horas antes. E ela a perguntar: porque é que não voltam?

O Guilherme e a Isabel até suspenderam a respiração.

Que sortilégio volta a ter aquela terra? Será que o Pescador da Ilha, que um dia, era madrugada, colheu o meu desgosto, embrulhou-o nas redes, lançou-o ao mar, e disse-me umas palavras que nunca mais esqueci, ainda anda por lá? Era um homem velho sem idade, tinha duas estrelas a fazer de olhos.

 
De São Paulo de Luanda me trouxeram para cá. Será que há caminhos futuros de regresso ao passado, quando não é o passado que procuramos, mas um presente sem amanhã?

O tempo, esse grande escultor. Quero descobrir o seu mecanismo secreto, o ponto de apoio da eternidade. É pedir muito? Não. É pedir tudo. Menos que tudo é pouco.


 

terça-feira, novembro 05, 2013

O Yahoo cortou relações comigo

Não fiz nada, não disse nada, não ameacei abandoná-lo e trocá-lo por outro. Bom, há uns tempos, aborrecida com a paginação do mural dos emails, fui bastante infiel, voltando sobretudo ao Gmail com quem mantenho uma relação de continuidade, e suspirando de saudades pelo velho Outlook, mas não passei daí...

E hoje, zás! Porque a conta está em risco, porque a password nova não serve, porque a antiga tem de ser substituída, porque assim e porque assado. E a minha correspondência diária? E os emails que só recebo por ali? E os meus sentimentos? Sim, os meus sentimentos!

Nada. O Yahoo ainda nem sequer respondeu ainda ao email apaziguador que lhe enviei, cumprindo passo a passo todas as formalidades, inclusive a de responder às perguntas secretas que eu própria forneci.

Eu sei que isto se passa entre sistemas virtuais, máquinas, respostas automáticas e outras abstrações. Mas caramba, podiam introduzir o logaritmo da emoção nesta lógica de absurdos. Sei que é possível. Eu própria, já conheci computadores mais sensíveis uns, do que outros. Inclusivamente, tive um que se embebedou com um cálice de vinho do Porto seco, e que durante horas quando se lhe carregava numa tecla, disparava letras seguidas com hics e tudo. Era o senhor Schneider e a nossa foi uma história de amor, pois foi ali que escrevi grande parte dos contos do meu primeiro livro de ficção, A Morte da Avó Cega.

Yahoo!! A nossa é uma relação com muitos anos.  A reconciliação ainda é possível. Manda um postalinho. Desamua. Deixa-me ir à minha caixa de correiooooooooooo.

Pleaseeeeeee.

 

sábado, novembro 02, 2013

Estrelas e Buracos Negros: estas histórias nunca acabam bem

Algures, na Constelação Draco. A 2,7 biliões de anos luz da Terra.

A Estrela andava na sua vida de Estrela. Uma vida fulgurante, resplandecente e solitária, pois a uma estrela basta-lhe o seu insuperável brilho que aquece as vastidões geladas das infinitas planuras intersticiais cósmicas.


NASA, S. Gezari (The Johns Hopkins University), and J. Guillochon (University of California, Santa Cruz)

O resto, se havia resto, planetas, satélites, poeiras cósmicas, nem se distinguia na esteira do seu incandescente manto de luz.

Depois, houve aquele encontro terrível. O Buraco Negro estava simplesmente lá. Imóvel e escondido. Na sua vida de Buraco Negro. Sozinho, pois a um buraco negro basta-lhe tudo que a voragem da sua fome gravitacional alcança.

A escala a que tudo isto se passa é tão inimaginável que não consigo encontrar palavras que descrevam esta tragédia abissal. Enfim. A Estrela aproximou-me demais e o Buraco Negro devorou-a, eis tudo. Um homicídio cósmico.

Sei que houve um som pavoroso que nunca escutaremos, porque se diz que no espaço o som não existe. Mas existe. Não está é ao alcance de sentidos como os que dispomos, para nos defender da loucura infinita em que tão infinitamente horríveis sons nos precipitariam, célula a célula, átomo a átomo, até a própria poeira de estrelas de que somos feitos uivar de pavor.

Estrelas e Buracos Negros. Estas histórias nunca acabam bem.

A menos que Buracos Negros sejam portais para outros universos, onde a Estrela emergindo, juntamente com planetas e cometas, outras estrelas e tudo o que o monstro vai devorando, terá recomeçado uma nova vida. Mas depois há aquela história terrível da densidade gravitacional dentro de um Buraco Negro ser tão grande, mas tão grande, que ali até o tempo congela num limiar de eternidade absoluta. E assim, a estrela continuará presa nas entranhas do Buraco Negro. Imóvel para sempre e sempre e sempre.

É melhor nem pensar nisso. A menos que a pessoa seja astrofísica. A menos que a pessoa se chame Stephen Hawking.


Para ver mais e saber mais alguma coisa:
PS1-10jh: Black Hole Caught Red-handed in a Stellar Homicide