terça-feira, novembro 12, 2013

Se uma gaivota viesse

Fala-se sempre nos cheiros quando se evocam os tempos pretéritos. O perfume dos morangos no tempo dos morangos, no tempo em que os morangos tinham perfume, e o cheiro dos lírios e dos gladíolos, por exemplo, levam-me direitinha ao Porto da minha infância. E há perfumes que acordam histórias de vida, e tempos e lugares e pessoas,

Mas a música é mais do que a banda sonora dos tempos. É um meio de transporte alado aos nossos dias de ontem. Ouço alguns fados da Amália, e estou diante do rio Zambeze, a olhar para as suas águas escuras e densas, que nesse tempo, atravessávamos no batelão do Matundo, rumo ao Moatize, por exemplo. Ouço a «Menina dos Olhos Tristes» na voz de Adriano Correia de Oliveira ou José Afonso, e volto a Vila Cabral, que já nem existe no mapa com esse nome, agora é Lichinga, e dali sigo até ao Lago Niassa e revejo-me criança nos doze anos que não chegavam para me fazer sentir de forma alguma a «senhorinha» que supostamente deveria começar a tornar-me, e que corria para a água com vontade de gritar de alegria. E ali fico e aqui estou, em recordações à flor da pele, atónita de espanto perante o esplendor da paisagem africana que me entrou nas veias, doce veneno de que nunca, jamais, me quererei libertar.

Ouço Fernando Tordo e aterro em Luanda. Ouço Paulo de Carvalho e há gritos de alegria à minha volta e lágrimas a correr pelos rostos de muitos. Havia cavalos à solta no mar da liberdade, havia poemas de amor, laranjas amargas e doces, no pleno azul dos dias novos.


Nas minhas viagens no tempo, nos últimos tempos, é pela música que embarco. As palavras vêm depois. Agarradas a elas, as imagens, os sons, as cores, os cheiros. Retalhos de vidas nossas.  

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