Retomo a «minha» Xerazade, a propósito da atribuição do Prémio Femina 2015 a Sónia Matias, toureira. O galardão foi criado em 2010 para «agraciar as Notáveis Mulheres Portuguesas», oriundas de Portugal, Países de Expressão Portuguesa, Comunidades Portuguesas e Lusófonas. No quinto aniversário da sua fundação alargou-se o âmbito das distinguidas com «mérito ao nível profissional, cultural e humanitário» no mundo, bem como pelo seu «relacionamento com outras culturas.
Em Xerazade, a Última Noite, Lisboa, 2015, Bertrand, pp, 107-108.
A premiada lidando um bezerro já bem causticado |
"É a memória um jogo?
O meu Touro abriu as asas. Céus, como ele ri! Amor, muito antes de Creta, entre mulheres e touros existe uma aliança. As mulheres não ferem o touro, brincam com ele. As mulheres não matam o touro. Amam-no. Que algumas reclamem para si a arena, a espada, a verónica, o cavalo e as bandarilhas, prova apenas o quanto nos afastámos da essência. Do fruto, sobraram as cascas. A semente perdeu-se há muito. Do gesto, secreto, resta, em mímica adulterada, a profanação de um mistério transformado espetáculo, e sem sentido algum. A não ser o mais primário de
todos os sentidos. O prazer de cheirar e ver correr sangue. Muito sangue.
Desde que não seja o nosso.
[...]
O que sobrou do velho culto? Um arremedo. O touro, a arena e um virtuoso. O Matador que demanda assistência e bebe aplausos, na encenação de uma morte precedida por uma espécie de bailado em pontas, gestos largos, ondular de capote, e muitos ferros cravados num corpo palpitante, perante uma assistência que respira o cheiro do medo e rejubila com a agonia, e reclama a estocada final. Mas antes, é preciso provocar, magoar, perseguir sem descanso. No lugar do círculo, sob a claridade estonteante do meio-dia, o toureiro encomenda-se à Virgem, cujo filho se ofereceu em holocausto, tomai o meu corpo, tomai o meu sangue, como símbolo de Redenção e aliança. Que ironia.
Sob a pretensa invocação de um arquétipo do herói, a larva transmuta-se em pequenos tiranos enfeitados de sangue e jóias falsas.
Pensa: por que motivo, na arena, o macho se traveste, meneando as ancas, as pernas desenhadas nos colãs cor-de-rosa, as nádegas evidenciadas no fato brilhante, justíssimo, resplandecente de luces, citando o outro macho, em trejeitos de mulher--dama, chamando-lhe «bonito», chamando-lhe «belo»? É para juntar mais um engano ao enredo de enganos. O touro confia na mulher. A mulher ama o touro. Deixa-se levar por ele, sobre as águas."
Em Xerazade, a Última Noite, Lisboa, 2015, Bertrand, pp, 107-108.
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