Até ir viver para África, os interditos alimentares de que me recordo eram apenas e só os relacionados com os nossos próprios gostos. E mesmo esses, dependiam muito da aceitação por parte dos crescidos, para quem "o menino ou a menina não têm querer". Ter comida no prato e várias refeições por dia, era um luxo e um privilégio pelo qual devíamos estar muito gratos com "tanta gente a morrer de fome no mundo e no mundo perto de nós". Preferências, gostos e desgostos, eram "manias" ou "esquisitices".
Aos sete anos, deixei de comer iscas. Um dia, depois da escola, cheguei a casa, cheirava muito bem, perguntei o que era o almoço, são iscas, olha que bom, fui mudar de roupa, tirar a batinha, vim para a mesa. Á primeira garfada, o vómito. Insisti. Outra vez. A carne estava cheia de "nervos", a textura era repugnante e cheiro por baixo do cheiro "bom", era horrível. Oh, toda a gente comeu e ninguém se queixou, insistiram a mãe e a Maria. Eu, que até então gostava, vinha com fome e queria muito gostar. Mas o meu corpo rejeitava aquele alimento. A menina deve estar doente. E estava, de enjoo e não consegui comer mais nada. Fui para a cama e tudo. Uma semana depois, a mesma cena. Gosto tanto do cheiro, disse eu, ao menos podia comer as batatas e o resto com o cheirinho. Mas, adubadas com o molho do fígado, provocaram-me o mesmo efeito, em pior. Graças à insistência, dessa vez vomitei mesmo muito. Estive na cama a tarde toda, a dormitar e a beber cházinho, não consegui jantar, e esta rejeição foi aceite como facto consumado. Era por demais óbvio que não estava a fazer "fitas". Era outra coisa.
Consensualmente, agora que penso nisso, recordo que havia "coisas" que não entravam nos nossos menus, apesar de vivermos e sermos do Porto, menos a mãe. Cabidela, por exemplo, estava fora de questão. E tripas, nem pensar. Nem sequer se falava ou pensava no assunto. A mãe ser lisboeta talvez tivesse alguma influência? A criada da minha avó, quando só nós, crianças, a estávamos a ouvir, disse algo neste sentido... mas, e mais uma vez, não se falava destas e de muitas outras coisas. Até ao dia em que, num almoço em casa de uns tios, demos por nós, crianças e pais, a olhar consternadíssimos a travessa fumegante do arrozinho vermelho escuro e espesso, com os pedaços da galinha a olharem para nós. Foi horrível. De repente, ficámos sem apetite. A começar pela mãe que não tocava "nisso", mas que educadamente tentou disfarçar, o que foi difícil porque o seu prato voltou praticamente intocado para a cozinha. O pai, que desde os três anos não comia nada que tivesse "pêlos" ou "penas" nem sequer se serviu. Mas este tabu estranhíssimo fica para outra estória, que vale a pena recordar.
Já em África, convivi, convivemos todos, com muitos outros tabus e interditos, de forma tão pacifica que o tema nem era bem tema. Era facto consumado que muçulmanos não comiam carne de porco, por exemplo, e hindus não tocavam em vaca. E nenhum deles comia animais que não fossem abatidos ritualmente. Africanos islamizados (no Norte de Moçambique eram muitos) seguiam os mesmos preceitos. Mas comiam peixe seco coisa que só mais tarde, em Luanda, aprendi quão delicioso era. Então, era tudo muito simples. Nós, brancos de primeira ou de segunda, comíamos porco e vaca, mas não insectos, e peixe desde que fosse fresco ou enlatado, como o atum ou as sardinhas. Aparentemente, só os chineses comiam tudo o que mexia, mas nos restaurantes que frequentávamos, nunca havia cão ou gato no menu. Nem cobras ou gafanhotos.
O processo pessoal, desde muito jovem ainda, de me ter começado a afastar de alguns alimentos, acabando por retirar desde há uns anos, produtos de origem animal da minha alimentação e vestuário, não foi linear nem repentino. Foi até muito progressivo. A alimentação sempre foi motivo de cuidado e atenção da minha parte. Houve uma época mais maluca, em que recém chegada de África e completamente à nora com a sociedade que vim encontrar, onde me sentia sempre tão horrivelmente deslocada, resolvi enveredar pelos caminhos árduos da macrobiótica, cuja base era o arroz integral, cozido a ponto de queimar o fundo da panela ou do tacho de barro. Cada garfada devia ser mastigada, pelo menos, 50 vezes. Este era um processo iniciático. Libertador. Com muita prática, até era místico, sei lá. Mas também era horrivelmente desinteressantes, que tristeza. Mas eu estava aí, e só não me pus a caminho da Índia, aos 23 para 24 anos, para me enfiar num ashram, meu grande sonho!, e encontrar a libertação do ser e outras coisas assim, porque tinha a meu cargo dois pequeníssimos seres que não tinham culpa nenhuma dos meus desacertos, infelicidades e buscas espirituais. Portanto, mesmos nos tempos mais estritos da macrobiótica, a eles nunca lhes faltou o que eu achava que era vital para crescerem fortes e saudáveis, como no anúncio das vitaminas. Carne, peixe, sopas de legumes sempre!, fruta, muito poucos doces e só de vez em quando. Refrigerantes, mesmo a célebre Coca-Cola, estavam proibidos na nossa casa. Se bebessem em casa dos outros, não fazia mal porque era muito esporádico.
Em Santo André, onde vivemos, vim a saber que um dos nossos vizinhos dizia que éramos drogados, porque comer assim e não beber coisas que todos os pais dão aos filhos e a si próprios, só mesmo de drogados. Ainda hoje isto me dá tanta vontade de rir. Agora, e este "agora" tem vários anos, conheço mães e pais de filhos vegetarianos ou veganos, onde todos seguem esses preceitos e são super saudáveis. Em Portugal e fora, por exemplo, na Escócia ou no Brasil. Mas nesses tempos do Regresso, o único exemplo que me vinha à cabeça face à regimes fora da caixinha impostos às crianças, era aquele bebé amoroso, que parecia ter oito meses mas já tinha três anos, e nem sequer conseguia pôr os pés no chão. A imagem que guardo é dele: um menino apático, minúsculo, da idade dos meus filhos, dois e três anos, parecendo ter pouco menos de um ano, sempre sentado num carrinho empurrado pelos pais enlaçados, dois seres diáfanos, vestidos de branco, novíssimos, lindíssimos e irreais, que seguiam escrupulosamente o regime macrobiótico, que impunham à criança. Ao fim da tarde, faziam meditação diante do mar, enquanto o filho morria de fome e não fazia nada, porque nem forças tinha para segurar a cabeça no pescoço.
Salvou-se. Soube eu muito mais tarde, através de uma amiga minha, médica, dos tempo de Luanda, que foi a jovem pediatra indigitada para tomar conta daquele caso extremo e tão extraordinário. A Mina, estudou macrobiótica a fundo para poder dialogar com conhecimento da causa e arranjar soluções que fossem consideradas legitimas e não ofensivas para os pais. É tão irónico pensar que os avós da criancinha que morria de fome, eram ambos médicos famosíssimos, e que a família tinha muito dinheiro... Felizmente, entraram em cena a tempo. O processo foi muito discreto, doce, consensual com todos os envolvidos a tomarem em consideração o superior interesse do bebé, que já não era tão bebé. A minha amiga contou-me tudo. Fica para a próxima.
MG, memórias.
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