segunda-feira, maio 23, 2022

Sempre que entro num teatro

 Evocando palcos e saudando a arte maior. O Teatro

    "[...] Revelo-te a sacralidade no profano viver. 

Terei de começar por contrapor ao mito da Caverna o paradigma do palco. É o mesmo olhar, mas na direcção inversa. Da Caverna, contemplávamos as sombras reflectidas nas paredes irregulares e conferíamos-lhes vida autónoma. E porém, aquelas ilusões criadas pela luz que rompia a escuridão matricial do túnel eram o que mais próximo da realidade exterior podíamos alcançar. Cá fora, fora do nosso alcance, derramava-se a intolerável claridade sob o dossel da infinitude celeste cuja visão nos enlouqueceria. Precisámos de tempo, para enfrentar uma e outra. Quando o conseguimos, rastejando para fora ao encontro do que passámos a considerar a realidade em si, perdemos o acesso às origens.

    E continuámos presos.





    Já o teatro propõe-nos o caminho inverso – o regresso ao útero da história. A cortina só se abre quando o público mergulha na escuridão. É então que tem início o ofício sagrado, já que o que se passa no palco, iluminado por velas, tochas, reflectores, holofotes ou luminárias, é sempre um exercício que busca religar a humana transcendência à sua fugidia existência. Parece-te excessiva esta descrição de um espaço que, para muitos de nós começou num anfiteatro ao ar livre, fosso de orquestra com altar de sacrifícios, e um pórtico que dava para o espaço cénico? Engano. Em todas as culturas, o teatro é sagrado desde a matriz. Continua a sê-lo por mais desvirtuado que se nos apresente. Recordo-te ainda que num desses anfiteatros de bancos de pedra, ou seriam ainda de madeira?, nos encontrámos. Sei lá porquê, sei lá como e sei lá quando.

    Lembras-te, amor?

    Eu não. Mas sempre que entro num teatro, seja qual for a sua dimensão, sinto um frémito de reverência. Não pelo espaço em si, mas pelo que ele comporta, guarda e permite transpor. Sentia exactamente o mesmo no tempo em que troupes de saltimbancos, palmilhando o mundo de terra em terra, levavam esta magia no bojo das suas miseráveis carroças de mulas, que, num desdobrar de tendas, numa fanfarra de músicas e num artifício de corpos e adereços, pelo poder sagrado da palavra devolviam à vida enredos de comédia ou tragédia, que ignorados demiurgos haviam engendrado. Quem eram eles? Nunca sabíamos. Não queríamos realmente saber. Não eram os autores das histórias que nos importavam."

    
Em Xerazade - A Última Noite, Lisboa, Bertrand Editora, 2015, pp 9-10. 

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