domingo, junho 26, 2022

DO PEQUENO-ALMOÇO AO MATABICHO

    Mata-bicho foi a primeira palavra colonial que se introduziu no nosso léxico, ainda antes de chegarmos ao nosso destino, Moçambique. Creio que foi antes mesmo do navio Império ancorar na Ilha da Madeira, onde permanecemos um dia, já conhecíamos a designação. O nome pouco elegante, mesmo rude, não fazia justiça ao banquete com que passámos a ser mimados logo de manhã cedo. Santo Deus, que banquete!! 


No paquete Império o matabicho era maravilhoso 


    Até então, e para nós, a primeira refeição do dia chamava-se pequeno-almoço e não tinha estória. Antes de irmos para a escola, comíamos um ou dois papo-secos com manteiga ou marmelada, ou outra compota ou geleia caseira da estação, acompanhados de uma caneca de leite. Para mim, só café de cevada, porque leite dava-me vómitos desde muito pequena, embora todos nós tenhamos sido criados dessa maneira. A mãe teve um péssimo parto do primeiro filho, com intervenção in extremis (uma cesariana complicadíssima). Aí, secou-lhe o peito. Dos outros três filhos, fosse porque motivo fosse, nenhum de nós mamou. O nosso pediatra, o querido doutor Corucho Dias, aconselhou encontrar-se numa das quintas perto de onde vivíamos, e o Porto tinha muitas nessa altura, uma vaca "de confiança", e acertar-se com os caseiros a entrega diária, em casa, desse mesmo leite que era então fervido e misturado, uma parte para quatro de água, igualmente fervida. Também havia leite em pó, mas não era considerado de "confiança". Portanto, fomos criados a biberon de que naturalmente não tenho qualquer recordação, a não ser o que a mãe contava sobre eu vomitar frequentemente aquela mistura.  Do pequeno-almoço metropolitano recordo, issosim, a caneca de café de cevada e os tais pães com compota, marmelada ou geleia. Mais tarde, apareceram os "iogurtes Veneza, a saúde à sua mesa” em boiões de vidro e eu adorava-os fazendo assim as pazes com os lacticínios.

    Mas no paquete Império, o pequeno-almoço/matabicho tinha tudo isso e mais ainda. Era servido às mesas, mas também havia, se a memória não me falha, buffet, pelo menos para irmos ver e escolher. Nos primeiros dias, comíamos tanto que achávamos que não íamos conseguir almoçar. Puro engano. Então, era assim: “como desejam os ovos? Estrelados, mexidos ou cozidos?” Ovos? Ena. Podem vir de todas as maneiras! "E o sumo, ananás, laranja, maçã, (e não recordo mais), qual é a preferência?" Sentados, víamos surgirem na nossa mesa pratinhos com fiambre em fatias muito fininhas, queijos de várias qualidades,  fatiados ou cortados em cubos, taças com saladas de frutas, ou só de uma espécie, à escolha, entre ananás, banana, manga, papaia, maracujá, maçã, pera, laranja… Em cestinhos de verga, traziam-nos pães de leite, carcaças, pão de forma, e torradas se as pedíssemos. E  petit-fours, que são bolos minúsculos. No serviço timbrado do paquete, vinha o café com leite, leite com chocolate, leite sem mais nada, e café simples. Do tal buffet podíamos escolher mais bolos, pasteis... em suma, uma overdose de gulodices, já a maior parte destes alimentos só em dias de festa (e nunca nesta diversidade) faziam a sua aparição nas nossas vidinhas. Por exemplo, fiambre era muito caro, portanto só de vez em quando. Ananás, era caríssimo e só em dias de festa, tipo Natal. Bolos, tirando os aniversários, e as festividades como Carnaval, Páscoa, etc., porque fazem mal aos dentes e não há dinheiro para se gastarem tantos ovos todos os dias por um motivo tão fútil. Mas ali não havia limites e a mãe, sensatamente, deixava-nos comer o que nos apetecesse, na certeza de uma dor de barriga seria o melhor argumento para nos travar a gulodice, confiando também no metabolismo de quatro miúdos saudáveis que saíam do salão das refeições pelas das oito da manhã e iam brincar, saltar, correr pelos decks até ao momento, duas horas depois, em que, com a digestão assegurada, já se podiam atirar para a piscina.

    E o lindo paquete a navegar pelo Oceano sem fim…

    Como é evidente, a situação normalizou e passámos a ter menos olhos e mais barriga. Curiosamente, a mãe continuou fiel aos hábitos da Metrópole, deliciando-se com o seu pãozinho com manteiga e o seu adorado (até ao fim), cafezinho com leite. E mais nada a seduzia na sua primeira refeição. Como era possível?   

        Em Moçambique, em Vila Cabral no remoto Niassa, nosso primeiro “poiso”, vivemos na Pousada durante quase dois anos. Na atual Lichinga, elevada a cidade dois anos antes de chegarmos, com direito a aeroporto inaugurado pelo senhor Presidente da República Américo Tomás um ano depois, não havia casas para arrendar. As que havia estavam tomadas. Havias pensões e... a  Pousada, epicentro da vida social. Mas ali, onde o senhor Governador do Niassa ia todos os dias, depois do almoço, tomar o seu café, as refeições eram desinteressantes. Menos no dia de frango à piripiri que era muito saboroso. Da Pousada recordo mais o clima de festa, os eventos, e a amizade e cumplicidade que se geraram entre as pessoas que ali viviam em carácter permanente e alguma das famílias notáveis da cidade que marcavam presença nas festas – bailes de Carnaval, baile de Ano Novo, e bailes por outras efemérides que já não recordo, com orquestra ao vivo . E os jovens militares que apareciam para tomar o seu uisquinho, dançar nos bailes, e para o ameno convivio no salão, todos os fins de tarde. 

    Há outras memórias, onde entram mortos, minas, tiros, dores, desgostos. Não são para aqui chamados, já que o tema é matabicho.

 

Vila Cabral, actual Lichinga foi elevada a cidade em 1962. Um ano depois de ali estarmos, em 1964, Presidente da República Almirante Américo Tomaz foi inaugurar o aeroporto. Tirando isso, não havia casas para ninguém. Construção civil era inexistente. Vivemos na Pousada durante quase dois anos...

    Já o matabicho da Pousada de Vila Cabral, actual Lichinga, que servia ovos, carnes frias, fruta e pão, café e leite, não deixa memória. A fruta, acrescente-se, era quase sempre de conserva. A princípio, achávamos delicioso, depois cansava. Ananás em calda, pêssegos em calda, salada de fruta em calda, pera em calda… O leite era condensado, e essa foi uma descoberta maravilhosa porque era tão bom que dava para comer às colheres. Claro que já vinha diluído, o que lhe tirava 90 por cento da graça, portanto continuei na cevada.

 

Eu, numa sala de aula do colégio Barroso. 
Lourenço Marques (actual Maputo) 1964/1965


Grupo das alunas internas Colégio Barroso. Das sentadas, sou a primeira à esquerda. Ao centro, a Directora, Irmã Maria Luísa Créditos da imagem: Teresa Branco em
https://www.facebook.com/barrosinhas.daapresentacaomariamocambique

    Um ano depois, entrei como aluna interna no colégio Dom António Barroso, mas antes disso, há que recordar o casal Manuela e Sérgio Zilhão, este comandante da Base Naval de Metangula, Lago Niassa, onde, segundo o próprio me contou recentemente, nem havia forno de pão quando ali chegou, pelo que o jovem comandante mandou vir um livro técnico e fez construir o forno que tanta falta fazia. Dali saíam vários tipos de pão que abasteciam toda a Base. Eram estaladiços e deliciosos. Também me lembro das mangas (fibrosas) fatiadas e docíssimas que chegavam de um mangal próximo, e dos bolos que a própria Nela fazia ou que eram feitos segundo a sua orientação. Falo mais dos tempos que ali passei no meu livro Moçambique para a Mãe se lembrar como foi, mas aqui restringo-me aos matabicho. 

    Também me lembro que nas casas dos Chefes de Posto (mais tarde chamados Administrador de Posto) uma espécie de guarda avançada do Império, onde quase toda a gente, menos nós, se levantava ainda o sol dormia, havia dois matabicho. O primeiro, compunha-se de café fortíssimo e qualquer coisa para trincar, normalmente biscoitos mesmo duros. Mais tarde, por volta das sete, sete e meia, quando o senhor administrador regressava das suas voltas matutinas, a mesa de refeições enchia-se com travessas de batatas fritas, bifes (de pacaça ou javali), ovos mexidos, pão também feito em casa em fornos que laboravam no quintal, bolos, doces, e fruta. Pantagruélico! Era tudo tanto, que chegava a tirar o apetite.

 

"Saltávamos da cama, íamos direitas aos lavatórios (cada leito tinha o seu) lavávamos a cara e os dentes, voltávamos para a cama (o nosso banho diário era à tarde), corríamos as cortinas para nos vestirmos com a maior decência, voltávamos a abri-las, vestíamo-nos, fazíamos a cama..." em colégio D. António Barroso, 1964.

    

       É curioso que a memória dos sóbrios matabicho do colégio D. António Barroso se tenham imposto com tanta intensidade. Porque eram muito mais frugais do que os que descrevo acima. Começava-se com fruta. Metades de toranja enormes e avermelhadas, que devorávamos com muito prazer. Depois, as proteínas: duas sardinhas de conserva alinhadinhas ao centro de um prato branco, grande. Era o que eu mais gostava. Acompanhava-se com pão, manteiga se quiséssemos. Creio que o pão era também feito no colégio, bem como as compotas e as geleias e comíamos tantos quantos nos apetecesse. Normalmente, um, excepcionalmente dois. Noutros dias, bifes finíssimos. Noutros, ovos mexidos. Nada de batatas fritas ou fatias de bolo. E sempre, café de cevada para mim, café com leite para todas as outras. Era tudo tão bom, tão na justa medida, e nós estávamos tão esfomeadas àquela hora, que todas as internas recordam prazerosamente esta primeira refeição que tomávamos, devorávamos!, às oito da manhã. A verdade é que saímos da cama às 6.15h, ao toque de sineta e do arrastar dos cortinados que tapavam as janelas dos nosso dormitório que tinha um grande pé direito. Saltávamos da cama, íamos direitas aos lavatórios (cada leito tinha o seu), lavávamos a cara e os dentes, voltávamos para o espaço da cama (o nosso banho diário era à tarde), corríamos as cortinas para nos vestirmos com a maior decência, voltávamos a abri-las, fazíamos a cama e em 15 minutos estávamos a caminho da sala de estudos. Aí, estudávamos até às 7.30h, quando seguimos, também em fila e em silêncio, para a igreja do colégio. Após a missa, íamos, sempre em muito boa formação, tomar o nosso matabicho. Talvez estes ritmos e pausas, e mudanças, nos fizessem apreciar ainda mais aquela refeição. Para mim, era a preferida. Tirando o lanche, mas esse já não vem ao caso.

Para mais memórias: Moçambique para a Mãe se lembrar como foi:  https://www.wook.pt/livro/mocambique-para-a-mae-se-lembrar-como-foi-manuela-gonzaga/15678522

sexta-feira, junho 24, 2022

Ele queria saber que perfume eu usava


"Vou consoar com uma mulher da vida. Levo peru, rabanadas, fruta cristalizada, espumante. Até lhe comprei um presente. Uma água-de-colónia.”

  

 Há muito anos, a revista CARAS encomendou-me um Conto de Natal: eu teria total liberdade. Tomei demasiado à letra a amplitude dessa "liberdade" criativa e recordei, romantizando um bocado, um episódio dos tempos do jornalismo romântico quando se partia para a reportagem como quem vai para um safari sem utras armas que não as da palavra e da atenção plena, feita de cumplicidades e amor. Uma narrativa que, reconheço, é de uma  inconveniência total para o meio de comunicação a que se destinava. Mas a editora e as chefias de redação da revista não comentaram, pelo que até foram muito delicadas. E felizmente enterraram este conto num suplemento publicitário, daqueles que ninguém lê porque são só para vermos as imagens. Sou-lhes muito grata pela subtileza. 

Partilho o conto.  



“DESTA VEZ, LEVO EU O PERÚ”

CONTO

  Por Manuela Gonzaga

Ele queria saber que perfume eu usava. Eu disse, depende e não uso perfumes, só águas-de-colónia. Às vezes, misturo. Não sejas chata, disse ele, dá-me dois ou três nomes, é para um presente de Natal. Nessa época, era relativamente fiel ao Miss Dior, ao Dioríssimo, e outro que não me lembro. E a uma preciosidade, L'Interdit by Givenchy, “o original, que a Audrey Hepburn criou” como explicou o amigo que mo ofereceu, comissário de bordo da TAP. Faltavam três dias para a festa da família e ele não tinha nenhuma. Tinha várias ex-mulheres e uma porção de filhos. Carlos Alfredo. Grande coração. Na época, os jornais eram muito românticos e ser repórter implicava meter as mãos no sangue e nas tripas do mundo. Ele era dessa tribo. A 24 de Dezembro, quando toda a gente se preparava para voltar para casa mais cedo, ele e uns quantos náufragos de famílias à deriva, ofereciam-se para as reportagens temáticas. O Natal na prisão. Nas urgências de um hospital. A Consoada na Sopa dos Pobres. Coisas assim. Três anos antes, tinha ido para o Linhó e até ficou amigo de um recluso. No ano seguinte, já com este em liberdade, acompanhou-o na sua qualidade de ladrão, produzindo uma emocionante reportagem que lhe ia custando a liberdade. O outro convencera-o a ficar à porta, “a controlar”, enquanto esvaziava o frigorífico de uns ricaços do Restelo que tinham ido passar a quadra ao Rio de Janeiro. “Assobias se houver crise. É rápido. Bifes, marisco, vinho, guloseimas para os putos.” O pior é que, agarradas aos comes e bebes, tinham vindo pulseiras, anéis, relógios, colares, no valor de uma pipa de massa. Carlos Alfredo defendeu o segredo profissional com unhas e dentes, mas acabou indiciado como cúmplice. Salvou-o a boa vontade do ladrão, que devolveu as jóias.

Este ano, pensara noutra temática: “Vou consoar com uma mulher da vida. Levo peru, rabanadas, fruta cristalizada, espumante. Até lhe comprei um presente. Uma água-de-colónia.” O chefe de redação encolheu os ombros:

⸺ Pagas do teu. E vê lá se não levas uma coça por conta. Parece-me tão… esquisito.

Na edição de 26 de Dezembro, porém, a reportagem dele não constava. Dia 27, quando voltei ao jornal, soube que tinha metido folgas atrasadas e que não devia aparecer antes do fim do ano. Ao almoço, um camarada de redacção ⸺ nunca se dizia “colegas”, porque “colegas são as putas”⸺ contou a história. Tinha-o encontrado, nessa desolada madrugada. A mulher da vida recrutada no Intendente, começou por fazer uma cena. Depois lá foi com ele para uma pensão, mas sempre a resmungar, “filho, tu tens uma tara qualquer”. Ele tratou de tudo. Abriu a garrafa, juntou as mesinhas de cabeceira e cobriu-as com uma toalha. Até levava velas: “Vai daí, ela desatou a beber e… apagou”. Rimos muito. E ele sem aparecer. Dia 30, uma rapariga foi ao jornal, à sua procura. Cara angulosa, pele branca e desmaiada, casaco pelo de coelho, saia comprida, roxa, botas cambadas. Olhos de quem tem 527 anos. Atendia-a eu. “Família?”, perguntei. Ele tinha tantas ex-famílias…

⸺ Amiga – respondeu ela. E acrescentou: ⸺ quer-se dizer.

Abreviando, era a tal da consoada:

⸺ Um homem tão bom. Tão delicado, poças. Deu-me um perfume. Deixou um monte de dinheiro. E eu, em jejum. Dois copitos e faz de conta que é o meu homem, faz de conta que somos uma família. Mais um copo. Tudo tão porreirinho, coiso e tal. Faz de conta. Tirei os sapatos, doíam-me os pés…

Calou-se, o rosto subitamente cor-de-rosa, olhos aflitos e envergonhados. Depois acrescentou:

⸺ Lixei-lhe o trabalho, não foi? ⸺ Estendeu-me a mão, com um papel:⸺ O meu número de telefone. Ele que apareça no Ano Novo. Conto-lhe a vida toda. Até pode escrever um livro!

Acompanhei-a à escada. Começou a descer, depois virou a cara para cima. Sorriu, era quase jovem e inocente outra vez:

⸺– Desta vez, levo eu o peru.

 

 

sábado, junho 18, 2022

Não eram amigos verdadeiros. Eram clientes.


A cerimónia da cremação pretende libertar a alma de quem morreu. As famílias recolhem as cinzas   numa casca de coco, e levam-nas para o mar ou para o rio mais próprio, devolvendo os restos mortais à Mãe Terra. 

Da Vida e seus tropeços

Depois, há aqueles dias em que tudo o que era a nossa terra firme desaparece. Amores, bens, casas, empregos, esteios das mais diversas naturezas do palpável. Em breve, os amigos tão constantes, tão presentes, diluem-se num horizonte de solidões. Em boa verdade, não eram amigos verdadeiros. Eram clientes. Da nossa alegria, da nossa riqueza material ou imaterial, do nosso cintilar que, como pequenas borboletas tontas e nocturnas, fogem para junto de outras efémeras luzes. Só que nesse mesmo instante em que parece que tudo acabou, é que a Vida na sua girândola volta a recomeçar e o caminho apresenta-se mais nítido do que nunca. Mesmo através de um véu de nevoeiros e medos e lágrimas, se ainda as soubermos chorar.

Todos os destinos passam por estes ordálios. Todos. Caminhar é viver. Viver é cair e levantar e seguir em frente. Às vezes, só em solidão podemos voltar a ouvir a voz verdadeira que nos indica, sem falha, o rumo da estrela polar da vida que determinámos ser. A nossa própria voz. Daí a importância vital do Sonho, o único bem inalienável que possuímos. Para além do tempo, mas sobre este ultimo não temos poder algum, apenas usufruto.

Quem sabe se e quando voltaria a encontrá-la? (conto)


https://revistaoresteia.com/2022/01/18/2579/

 SÓ DE PENSAR NELA


— Volta-te para mim — pediu ela.
Ele girou na cama, tomando consciência do colchão duro, dos lençóis leves, do corpo pesado, o seu, subitamente desperto e consciente do outro corpo ao seu lado.
— Abraça-me — pediu ela.
Tinha uma voz rouca e falava muito baixo. Cheirava a animal marinho. Tinha uma pele suave e um corpo denso. Era grande. Era quase tão grande como ele.
— Quero a tua boca — pediu ela.
Ele respirou fundo, extasiado pela onda de um desejo avassalador, tão inesperado que teve vontade de gritar. Estavam deitados numa cama larga, num quarto escuríssimo a espaços fatiado pela claridade incerta de uma luz leitosa. De onde vinha? Aparentemente do exterior, por uma janela que não se deixava ver. O silêncio que os rodeava era quase total. Não se ouviam ruídos de tráfego, barulho de gente, zumbidos de máquinas. Nada. Só um profundo silêncio habitado pela respiração dos dois e pelo triunfante rufar de tambores do seu próprio coração. E por um cheiro amoniacal e doce onde ele encontrou a memória muito antiga de algas meio secas na preia-mar, à mistura com peixes esventrados por bicos de gaivotas famintas, e bagas de iodo a rebentar sob os seus dedos infantis. Há quanto tempo não sorvia aquele perfume?
A boca dela colou-se à sua e a sensação de felicidade tornou-se tão grande que ele sentiu medo. Medo do próprio desejo acordado? Ou da silenciosa e estranha sugestão de ameaça que pairava sobre ambos, como se perigo se ocultasse nas sombras? Respirou fundo. Perigo algum conseguiria diminuir um átimo que fosse da intensidade do desejo acordado pela presença do corpo quente, macio e duro, deliciosamente nu, colado ao seu.
— Volta-te mais para mim — ordenou ela.
E ele voltou-se a tempo de ver, nas tréguas breves da luz que cortava a mortalha da escuridão que os envolvia, os olhos cor de avelã que brilhavam como sóis no rosto que lhe parecia moreno, de uma beleza sem idade. Ela cheirava, também, a canela.
— Cobre-me — exigiu, numa urgência agónica. E ele pensou que a voz dela lhe fazia lembrar o último sopro de um animal degolado.
E foi então, ao cobri-la, que reconheceu a natureza da ameaça que se erguia contra os dois. Num desespero, ainda sentiu o calor molhado do beijo que trocaram e que o orvalhou de um prazer tão intenso que aquele sabor permaneceria nele para o resto dos seus dias. Mas mal conseguiu penetrá-la e muito menos permanecer no corpo que se lhe oferecia. Nesse exacto momento sentiu, num desgosto infinito, que a respiração da mulher, os seios duros, as pernas fortes a enrolarem-se à volta de si, a escura, a escaldante boca, a flor de carne que se abria a acolher por brevíssimos momentos a sua serpente triunfantemente intumescida, tudo se desfazia como uma miragem.
Acordou com uma vontade tremenda de chorar e de rir.
Um homem muito velho, com uma gloriosa ereção de quarenta anos, deitado junto de uma mulher idosa que ressonava baixinho. Ergueu-se em silêncio para não a acordar. Não estava a sonhar com ela. Nunca sonhava com ela. Viviam juntos, eis tudo, numa cumplicidade feita mais de silêncios do que de palavras, há tantos anos talhados em dias tão iguais, que tocar-lhe ou imaginar-se sequer a tocar-lhe por prazer e com desejo, mesmo em sonhos, lhe teria parecido obsceno.
Lentamente, dirigiu-se à janela e espreitou o dia que começava a nascer. «Obrigada», murmurou, a boca quase encostada à vidraça que de imediato ficou embaciada. Depois aclarou a garganta que doía e limpou os olhos húmidos. Quem sabe se e quando voltaria a encontrá-la?
Só de pensar nela, só de pensar nela.
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https://revistaoresteia.com/2022/01/18/2579/

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domingo, junho 12, 2022

A Noite Escura é um útero sem mãe à volta

 A Noite Escura é um útero sem mãe à volta. É o silêncio da floresta sem árvores, do rio sem água, do caminhar num território onde para cima ou para baixo, para um lado ou para o outro, é igual. Na Noite Escura, o sentir é sem sentidos. O vento não tem asas. O tempo não tem medida. Só existe o trilho singular que se percorre à luz trémula da certeza no devir da incandescente alvorada. São eles e elas que o dizem. Em muitas línguas. Em muitos cultos. Em muitos e desvairados tempos. Eles os bem-amados da divindade que caminham por caminhos que não existem. Eles são o caminho. Eles são. E nós aqui, tão sozinhos uns com os outros, aguardamos o seu sinal.