Mata-bicho foi a primeira palavra
colonial que se introduziu no nosso léxico, ainda antes de chegarmos ao nosso
destino, Moçambique. Creio que foi antes mesmo do navio Império ancorar na Ilha
da Madeira, onde permanecemos um dia, já conhecíamos a designação. O nome pouco elegante, mesmo rude, não fazia justiça ao banquete com que passámos a ser mimados logo
de manhã cedo. Santo Deus, que banquete!!
No paquete Império o matabicho era maravilhoso |
Até então, e para nós, a primeira refeição do dia chamava-se pequeno-almoço e não tinha estória. Antes de irmos para a escola, comíamos um ou dois papo-secos com manteiga ou marmelada, ou outra compota ou geleia caseira da estação, acompanhados de uma caneca de leite. Para mim, só café de cevada, porque leite dava-me vómitos desde muito pequena, embora todos nós tenhamos sido criados dessa maneira. A mãe teve um péssimo parto do primeiro filho, com intervenção in extremis (uma cesariana complicadíssima). Aí, secou-lhe o peito. Dos outros três filhos, fosse porque motivo fosse, nenhum de nós mamou. O nosso pediatra, o querido doutor Corucho Dias, aconselhou encontrar-se numa das quintas perto de onde vivíamos, e o Porto tinha muitas nessa altura, uma vaca "de confiança", e acertar-se com os caseiros a entrega diária, em casa, desse mesmo leite que era então fervido e misturado, uma parte para quatro de água, igualmente fervida. Também havia leite em pó, mas não era considerado de "confiança". Portanto, fomos criados a biberon de que naturalmente não tenho qualquer recordação, a não ser o que a mãe contava sobre eu vomitar frequentemente aquela mistura. Do pequeno-almoço metropolitano recordo, issosim, a caneca de café de cevada e os tais pães com compota, marmelada ou geleia. Mais tarde, apareceram os "iogurtes Veneza, a saúde à sua mesa” em boiões de vidro e eu adorava-os fazendo assim as pazes com os lacticínios.
Mas no paquete Império, o pequeno-almoço/matabicho tinha tudo isso e mais ainda. Era servido às mesas, mas também havia, se a memória não me falha, buffet, pelo menos para irmos ver e escolher. Nos primeiros dias, comíamos tanto que achávamos que não íamos conseguir almoçar. Puro engano. Então, era assim: “como desejam os ovos? Estrelados, mexidos ou cozidos?” Ovos? Ena. Podem vir de todas as maneiras! "E o sumo, ananás, laranja, maçã, (e não recordo mais), qual é a preferência?" Sentados, víamos surgirem na nossa mesa pratinhos com fiambre em fatias muito fininhas, queijos de várias qualidades, fatiados ou cortados em cubos, taças com saladas de frutas, ou só de uma espécie, à escolha, entre ananás, banana, manga, papaia, maracujá, maçã, pera, laranja… Em cestinhos de verga, traziam-nos pães de leite, carcaças, pão de forma, e torradas se as pedíssemos. E petit-fours, que são bolos minúsculos. No serviço timbrado do paquete, vinha o café com leite, leite com chocolate, leite sem mais nada, e café simples. Do tal buffet podíamos escolher mais bolos, pasteis... em suma, uma overdose de gulodices, já a maior parte destes alimentos só em dias de festa (e nunca nesta diversidade) faziam a sua aparição nas nossas vidinhas. Por exemplo, fiambre era muito caro, portanto só de vez em quando. Ananás, era caríssimo e só em dias de festa, tipo Natal. Bolos, tirando os aniversários, e as festividades como Carnaval, Páscoa, etc., porque fazem mal aos dentes e não há dinheiro para se gastarem tantos ovos todos os dias por um motivo tão fútil. Mas ali não havia limites e a mãe, sensatamente, deixava-nos comer o que nos apetecesse, na certeza de uma dor de barriga seria o melhor argumento para nos travar a gulodice, confiando também no metabolismo de quatro miúdos saudáveis que saíam do salão das refeições pelas das oito da manhã e iam brincar, saltar, correr pelos decks até ao momento, duas horas depois, em que, com a digestão assegurada, já se podiam atirar para a piscina.
E o lindo paquete a navegar pelo Oceano
sem fim…
Como é evidente, a situação normalizou e passámos a ter menos olhos e mais barriga. Curiosamente, a mãe continuou fiel aos hábitos da Metrópole, deliciando-se com o seu pãozinho com manteiga e o seu adorado (até ao fim), cafezinho com leite. E mais nada a seduzia na sua primeira refeição. Como era possível?
Em Moçambique, em Vila Cabral no remoto Niassa, nosso primeiro “poiso”, vivemos na Pousada durante quase dois anos. Na atual Lichinga, elevada a cidade dois anos antes de chegarmos, com direito a aeroporto inaugurado pelo senhor Presidente da República Américo Tomás um ano depois, não havia casas para arrendar. As que havia estavam tomadas. Havias pensões e... a Pousada, epicentro da vida social. Mas ali, onde o senhor Governador do Niassa ia todos os dias, depois do almoço, tomar o seu café, as refeições eram desinteressantes. Menos no dia de frango à piripiri que era muito saboroso. Da Pousada recordo mais o clima de festa, os eventos, e a amizade e cumplicidade que se geraram entre as pessoas que ali viviam em carácter permanente e alguma das famílias notáveis da cidade que marcavam presença nas festas – bailes de Carnaval, baile de Ano Novo, e bailes por outras efemérides que já não recordo, com orquestra ao vivo . E os jovens militares que apareciam para tomar o seu uisquinho, dançar nos bailes, e para o ameno convivio no salão, todos os fins de tarde.
Há outras memórias, onde entram mortos, minas, tiros, dores, desgostos. Não são para aqui chamados, já que o tema é matabicho.
Já o matabicho da Pousada de
Vila Cabral, actual Lichinga, que servia ovos, carnes frias, fruta e pão, café e leite, não deixa memória. A fruta, acrescente-se, era quase sempre de
conserva. A princípio, achávamos delicioso, depois cansava. Ananás em calda, pêssegos
em calda, salada de fruta em calda, pera em calda… O leite era condensado, e
essa foi uma descoberta maravilhosa porque era tão bom que dava para comer às colheres.
Claro que já vinha diluído, o que lhe tirava 90 por cento da graça, portanto
continuei na cevada.
Eu, numa sala de aula do colégio Barroso. Lourenço Marques (actual Maputo) 1964/1965 |
Um ano depois, entrei como aluna interna no colégio Dom António Barroso, mas antes disso, há que recordar o casal Manuela e Sérgio Zilhão, este comandante da Base Naval de Metangula, Lago Niassa, onde, segundo o próprio me contou recentemente, nem havia forno de pão quando ali chegou, pelo que o jovem comandante mandou vir um livro técnico e fez construir o forno que tanta falta fazia. Dali saíam vários tipos de pão que abasteciam toda a Base. Eram estaladiços e deliciosos. Também me lembro das mangas (fibrosas) fatiadas e docíssimas que chegavam de um mangal próximo, e dos bolos que a própria Nela fazia ou que eram feitos segundo a sua orientação. Falo mais dos tempos que ali passei no meu livro Moçambique para a Mãe se lembrar como foi, mas aqui restringo-me aos matabicho.
Também me lembro que nas casas dos Chefes
de Posto (mais tarde chamados Administrador de Posto) uma espécie de guarda
avançada do Império, onde quase toda a gente, menos nós, se levantava ainda o
sol dormia, havia dois matabicho. O primeiro, compunha-se de café fortíssimo e
qualquer coisa para trincar, normalmente biscoitos mesmo duros. Mais tarde, por
volta das sete, sete e meia, quando o senhor administrador regressava das suas
voltas matutinas, a mesa de refeições enchia-se com travessas de batatas
fritas, bifes (de pacaça ou javali), ovos mexidos, pão também feito em casa em
fornos que laboravam no quintal, bolos, doces, e fruta. Pantagruélico! Era tudo tanto, que chegava a tirar o
apetite.
É curioso que a memória dos sóbrios matabicho do colégio D. António Barroso se tenham imposto com tanta intensidade. Porque eram muito mais frugais do que os que descrevo acima. Começava-se com fruta. Metades de toranja enormes e avermelhadas, que devorávamos com muito prazer. Depois, as proteínas: duas sardinhas de conserva alinhadinhas ao centro de um prato branco, grande. Era o que eu mais gostava. Acompanhava-se com pão, manteiga se quiséssemos. Creio que o pão era também feito no colégio, bem como as compotas e as geleias e comíamos tantos quantos nos apetecesse. Normalmente, um, excepcionalmente dois. Noutros dias, bifes finíssimos. Noutros, ovos mexidos. Nada de batatas fritas ou fatias de bolo. E sempre, café de cevada para mim, café com leite para todas as outras. Era tudo tão bom, tão na justa medida, e nós estávamos tão esfomeadas àquela hora, que todas as internas recordam prazerosamente esta primeira refeição que tomávamos, devorávamos!, às oito da manhã. A verdade é que saímos da cama às 6.15h, ao toque de sineta e do arrastar dos cortinados que tapavam as janelas dos nosso dormitório que tinha um grande pé direito. Saltávamos da cama, íamos direitas aos lavatórios (cada leito tinha o seu), lavávamos a cara e os dentes, voltávamos para o espaço da cama (o nosso banho diário era à tarde), corríamos as cortinas para nos vestirmos com a maior decência, voltávamos a abri-las, fazíamos a cama e em 15 minutos estávamos a caminho da sala de estudos. Aí, estudávamos até às 7.30h, quando seguimos, também em fila e em silêncio, para a igreja do colégio. Após a missa, íamos, sempre em muito boa formação, tomar o nosso matabicho. Talvez estes ritmos e pausas, e mudanças, nos fizessem apreciar ainda mais aquela refeição. Para mim, era a preferida. Tirando o lanche, mas esse já não vem ao caso.