Alguns não entendem que nós, os aparentemente imóveis, indolentes numa certa medida e declaradamente sonhadores estamos tão ocupados a dar à manivela dos dias que aparentamos muito pouco agir. Acontece que muito do que fazemos só se vai ver nos dias de amanhã. Quantos de nós ainda estarão por cá quando tal acontecer? Sabê-lo.
terça-feira, junho 18, 2024
domingo, outubro 23, 2022
Amores e amoras: sonhemos.
Alguém, por aqui, tem, teve, ou quer vir a ter sonhos lúcidos? Eu já. Poucas vezes, mas inesquecíveis. É uma questão de treino e de pequenos preparativos durante o acordar, com técnicas muito simples. Por exemplo: consciencializarmo-nos dos passos que damos ao caminhar e repetir, "estou acordada". Focarmo-no no gesto comezinho de acender ou apagar a luz -- nos sonhos não funciona. E noutras coisas que constituem pequenos testes de realidade diurna em que conscencializamos, acordados, que estammos ... acordados. Até ao momento mágico em que, a dormir profundamente, fazemos o clique e sabemos que aquela dimensão, elástica, esquiva, mas tão sólida como a dos quotidianos acordados, é toda outra:
terça-feira, outubro 18, 2022
A realidade é um ponto de vista? Ou dois monstros a olharem para mim
Era tudo muito belo e nós, jovens os dois, estávamos a começar a viver um encantamento que sabe-se lá onde nos levaria, porque ele já falava de futuro, quando ainda nem tínhamos começado sequer a ter passado. Na noite belíssima havia lua, mar em frente, mão na mão. E um ruído incessante de cigarras, grilos, gritos de pássaros nocturnos e o marulhar das ondas. Uma aranha passou à nossa frente, em movimento pendular, pendurada no seu fio preso no ramo de um arbusto. Foi epifânico, porque tudo o mais desapareceu e começei a tentar ver-nos, aos dois, pelos multifacetados olhos da pequenina aranha. E assim, num clarão que durou microsegundos, vi dois monstros dentro de uma estrutura monstruosa, a olharem para mim, aquela de mim que estava a tentar imaginar-se aranha.. Mas tudo o que, para mim, era real, acabara de se estilhaçar.
Tentei ir mais longe. Em exercício de imaginação, pensei nas mais diversas criaturas que me vieram à cabeça, desde cães, lobos, peixes, lulas, árvores, moscas, cobras, pássaros... cada uma das quais com os seus orgãos de apreender o real. Cheirando, vendo, ouvindo, sentindo, de forma completamente diversa da nossa. Era maravilhoso e avassalador. Ele perguntou em que estás a pensar? e eu disse que estava a perceber que a realidade é um ponto de vista muito particular, e ele perguntou, perplexo, como assim? e eu falei de aranhas e pinguins, e lobos e pardais, e lulas e tartarugas. O quê?? Sim. Cada uma dessas espécies vê e sente o mundo, aquilo a que chamamos real, de outras formas, com outras cores ou sem cores nenhumas, através de sons e infrasons que não captamos, e de cheiros que nem imaginamos que existem, e por aí fora.
Então os meus ouvidos captaram o ronronar do carro mover-se. Já não estávamos de mão dada porque ele estava ocupado com mudanças, volante, pedais: "Vou levar-te a casa, querida. Estás muito cansada e eu também tive um dia puxado. Amanhã falamos." E eu: "Mas ouviste, entendeste, o que acabei de dizer?" E ele: "Ouvi e entendi perfeitamente, e vou dormir para esquecer porque se começar a pensar assim tenho a certeza de que acabarei por enlouquecer. A minha realidade, estreita e pequenina como dizes, chega-me e sobra-me. Não leves a mal, querida. Conheço os meus limites."Este momento fulgurante assinalou também o momento em que ficámos fora da órbita um do outro. Foi indolor. O encantamento persistiu durante algum tempo, mas já não havia chão para essa tão frágil flor.
domingo, outubro 09, 2022
Que a paz esteja connosco
Já se cruzaram as fronteiras todas e nada, nem ninguém, vai ficar de fora. Sobre a mesa das operações redentoras, discute-se, ao pormenor de última hora, o novo esquisso geopolítico à escala do planeta. Longe dos teatros de guerra, mas tragicamente perto de tudo, porque a guerra dos nossos tempos inquina a Terra inteira e todas as suas formas de vida, estrategas e dirigentes dos grandes blocos cavalgam os ventos da energia que fez nascer a civilização em que vivemos. Com um olho nos recursos hídricos, outro nas fontes primárias dos combustíveis que nos alimentam os quotidianos.
sexta-feira, julho 15, 2022
As letras evaporam-se no ar escaldante
O chão está quente, as paredes estão quentes, o tampo das mesas e os braços das cadeiras estão quentes, as folhas dos livros de tão quentes amarelecem diante dos nosso olhar incrédulo e caiem no chão encarquilhadinhas sem força para segurar as letras que se evaporam no ar escaldante, e temos de tomar cuidado quando falamos porque as palavras tendem a sair aos turbilhões e todas ao mesmo tempo a pipocar umas contra as outras o que torna o discurso bastante incompreensível o que é irrelevante porque ninguém ouve nada para além do marulhar indiferenciado da maré baixa destes dias ensombrados de luz.
domingo, junho 26, 2022
DO PEQUENO-ALMOÇO AO MATABICHO
Mata-bicho foi a primeira palavra
colonial que se introduziu no nosso léxico, ainda antes de chegarmos ao nosso
destino, Moçambique. Creio que foi antes mesmo do navio Império ancorar na Ilha
da Madeira, onde permanecemos um dia, já conhecíamos a designação. O nome pouco elegante, mesmo rude, não fazia justiça ao banquete com que passámos a ser mimados logo
de manhã cedo. Santo Deus, que banquete!!
No paquete Império o matabicho era maravilhoso |
Até então, e para nós, a primeira refeição do dia chamava-se pequeno-almoço e não tinha estória. Antes de irmos para a escola, comíamos um ou dois papo-secos com manteiga ou marmelada, ou outra compota ou geleia caseira da estação, acompanhados de uma caneca de leite. Para mim, só café de cevada, porque leite dava-me vómitos desde muito pequena, embora todos nós tenhamos sido criados dessa maneira. A mãe teve um péssimo parto do primeiro filho, com intervenção in extremis (uma cesariana complicadíssima). Aí, secou-lhe o peito. Dos outros três filhos, fosse porque motivo fosse, nenhum de nós mamou. O nosso pediatra, o querido doutor Corucho Dias, aconselhou encontrar-se numa das quintas perto de onde vivíamos, e o Porto tinha muitas nessa altura, uma vaca "de confiança", e acertar-se com os caseiros a entrega diária, em casa, desse mesmo leite que era então fervido e misturado, uma parte para quatro de água, igualmente fervida. Também havia leite em pó, mas não era considerado de "confiança". Portanto, fomos criados a biberon de que naturalmente não tenho qualquer recordação, a não ser o que a mãe contava sobre eu vomitar frequentemente aquela mistura. Do pequeno-almoço metropolitano recordo, issosim, a caneca de café de cevada e os tais pães com compota, marmelada ou geleia. Mais tarde, apareceram os "iogurtes Veneza, a saúde à sua mesa” em boiões de vidro e eu adorava-os fazendo assim as pazes com os lacticínios.
Mas no paquete Império, o pequeno-almoço/matabicho tinha tudo isso e mais ainda. Era servido às mesas, mas também havia, se a memória não me falha, buffet, pelo menos para irmos ver e escolher. Nos primeiros dias, comíamos tanto que achávamos que não íamos conseguir almoçar. Puro engano. Então, era assim: “como desejam os ovos? Estrelados, mexidos ou cozidos?” Ovos? Ena. Podem vir de todas as maneiras! "E o sumo, ananás, laranja, maçã, (e não recordo mais), qual é a preferência?" Sentados, víamos surgirem na nossa mesa pratinhos com fiambre em fatias muito fininhas, queijos de várias qualidades, fatiados ou cortados em cubos, taças com saladas de frutas, ou só de uma espécie, à escolha, entre ananás, banana, manga, papaia, maracujá, maçã, pera, laranja… Em cestinhos de verga, traziam-nos pães de leite, carcaças, pão de forma, e torradas se as pedíssemos. E petit-fours, que são bolos minúsculos. No serviço timbrado do paquete, vinha o café com leite, leite com chocolate, leite sem mais nada, e café simples. Do tal buffet podíamos escolher mais bolos, pasteis... em suma, uma overdose de gulodices, já a maior parte destes alimentos só em dias de festa (e nunca nesta diversidade) faziam a sua aparição nas nossas vidinhas. Por exemplo, fiambre era muito caro, portanto só de vez em quando. Ananás, era caríssimo e só em dias de festa, tipo Natal. Bolos, tirando os aniversários, e as festividades como Carnaval, Páscoa, etc., porque fazem mal aos dentes e não há dinheiro para se gastarem tantos ovos todos os dias por um motivo tão fútil. Mas ali não havia limites e a mãe, sensatamente, deixava-nos comer o que nos apetecesse, na certeza de uma dor de barriga seria o melhor argumento para nos travar a gulodice, confiando também no metabolismo de quatro miúdos saudáveis que saíam do salão das refeições pelas das oito da manhã e iam brincar, saltar, correr pelos decks até ao momento, duas horas depois, em que, com a digestão assegurada, já se podiam atirar para a piscina.
E o lindo paquete a navegar pelo Oceano
sem fim…
Como é evidente, a situação normalizou e passámos a ter menos olhos e mais barriga. Curiosamente, a mãe continuou fiel aos hábitos da Metrópole, deliciando-se com o seu pãozinho com manteiga e o seu adorado (até ao fim), cafezinho com leite. E mais nada a seduzia na sua primeira refeição. Como era possível?
Em Moçambique, em Vila Cabral no remoto Niassa, nosso primeiro “poiso”, vivemos na Pousada durante quase dois anos. Na atual Lichinga, elevada a cidade dois anos antes de chegarmos, com direito a aeroporto inaugurado pelo senhor Presidente da República Américo Tomás um ano depois, não havia casas para arrendar. As que havia estavam tomadas. Havias pensões e... a Pousada, epicentro da vida social. Mas ali, onde o senhor Governador do Niassa ia todos os dias, depois do almoço, tomar o seu café, as refeições eram desinteressantes. Menos no dia de frango à piripiri que era muito saboroso. Da Pousada recordo mais o clima de festa, os eventos, e a amizade e cumplicidade que se geraram entre as pessoas que ali viviam em carácter permanente e alguma das famílias notáveis da cidade que marcavam presença nas festas – bailes de Carnaval, baile de Ano Novo, e bailes por outras efemérides que já não recordo, com orquestra ao vivo . E os jovens militares que apareciam para tomar o seu uisquinho, dançar nos bailes, e para o ameno convivio no salão, todos os fins de tarde.
Há outras memórias, onde entram mortos, minas, tiros, dores, desgostos. Não são para aqui chamados, já que o tema é matabicho.
Já o matabicho da Pousada de
Vila Cabral, actual Lichinga, que servia ovos, carnes frias, fruta e pão, café e leite, não deixa memória. A fruta, acrescente-se, era quase sempre de
conserva. A princípio, achávamos delicioso, depois cansava. Ananás em calda, pêssegos
em calda, salada de fruta em calda, pera em calda… O leite era condensado, e
essa foi uma descoberta maravilhosa porque era tão bom que dava para comer às colheres.
Claro que já vinha diluído, o que lhe tirava 90 por cento da graça, portanto
continuei na cevada.
Eu, numa sala de aula do colégio Barroso. Lourenço Marques (actual Maputo) 1964/1965 |
Um ano depois, entrei como aluna interna no colégio Dom António Barroso, mas antes disso, há que recordar o casal Manuela e Sérgio Zilhão, este comandante da Base Naval de Metangula, Lago Niassa, onde, segundo o próprio me contou recentemente, nem havia forno de pão quando ali chegou, pelo que o jovem comandante mandou vir um livro técnico e fez construir o forno que tanta falta fazia. Dali saíam vários tipos de pão que abasteciam toda a Base. Eram estaladiços e deliciosos. Também me lembro das mangas (fibrosas) fatiadas e docíssimas que chegavam de um mangal próximo, e dos bolos que a própria Nela fazia ou que eram feitos segundo a sua orientação. Falo mais dos tempos que ali passei no meu livro Moçambique para a Mãe se lembrar como foi, mas aqui restringo-me aos matabicho.
Também me lembro que nas casas dos Chefes
de Posto (mais tarde chamados Administrador de Posto) uma espécie de guarda
avançada do Império, onde quase toda a gente, menos nós, se levantava ainda o
sol dormia, havia dois matabicho. O primeiro, compunha-se de café fortíssimo e
qualquer coisa para trincar, normalmente biscoitos mesmo duros. Mais tarde, por
volta das sete, sete e meia, quando o senhor administrador regressava das suas
voltas matutinas, a mesa de refeições enchia-se com travessas de batatas
fritas, bifes (de pacaça ou javali), ovos mexidos, pão também feito em casa em
fornos que laboravam no quintal, bolos, doces, e fruta. Pantagruélico! Era tudo tanto, que chegava a tirar o
apetite.
É curioso que a memória dos sóbrios matabicho do colégio D. António Barroso se tenham imposto com tanta intensidade. Porque eram muito mais frugais do que os que descrevo acima. Começava-se com fruta. Metades de toranja enormes e avermelhadas, que devorávamos com muito prazer. Depois, as proteínas: duas sardinhas de conserva alinhadinhas ao centro de um prato branco, grande. Era o que eu mais gostava. Acompanhava-se com pão, manteiga se quiséssemos. Creio que o pão era também feito no colégio, bem como as compotas e as geleias e comíamos tantos quantos nos apetecesse. Normalmente, um, excepcionalmente dois. Noutros dias, bifes finíssimos. Noutros, ovos mexidos. Nada de batatas fritas ou fatias de bolo. E sempre, café de cevada para mim, café com leite para todas as outras. Era tudo tão bom, tão na justa medida, e nós estávamos tão esfomeadas àquela hora, que todas as internas recordam prazerosamente esta primeira refeição que tomávamos, devorávamos!, às oito da manhã. A verdade é que saímos da cama às 6.15h, ao toque de sineta e do arrastar dos cortinados que tapavam as janelas dos nosso dormitório que tinha um grande pé direito. Saltávamos da cama, íamos direitas aos lavatórios (cada leito tinha o seu), lavávamos a cara e os dentes, voltávamos para o espaço da cama (o nosso banho diário era à tarde), corríamos as cortinas para nos vestirmos com a maior decência, voltávamos a abri-las, fazíamos a cama e em 15 minutos estávamos a caminho da sala de estudos. Aí, estudávamos até às 7.30h, quando seguimos, também em fila e em silêncio, para a igreja do colégio. Após a missa, íamos, sempre em muito boa formação, tomar o nosso matabicho. Talvez estes ritmos e pausas, e mudanças, nos fizessem apreciar ainda mais aquela refeição. Para mim, era a preferida. Tirando o lanche, mas esse já não vem ao caso.
sexta-feira, junho 24, 2022
Ele queria saber que perfume eu usava
Há muito anos, a revista CARAS encomendou-me um Conto de Natal: eu teria total liberdade. Tomei demasiado à letra a amplitude dessa "liberdade" criativa e recordei, romantizando um bocado, um episódio dos tempos do jornalismo romântico quando se partia para a reportagem como quem vai para um safari sem utras armas que não as da palavra e da atenção plena, feita de cumplicidades e amor. Uma narrativa que, reconheço, é de uma inconveniência total para o meio de comunicação a que se destinava. Mas a editora e as chefias de redação da revista não comentaram, pelo que até foram muito delicadas. E felizmente enterraram este conto num suplemento publicitário, daqueles que ninguém lê porque são só para vermos as imagens. Sou-lhes muito grata pela subtileza.
Partilho o conto.
“DESTA
VEZ, LEVO EU O PERÚ”
CONTO
Ele queria saber que perfume eu usava. Eu disse, depende e não uso
perfumes, só águas-de-colónia. Às vezes, misturo. Não sejas chata, disse ele, dá-me
dois ou três nomes, é para um presente de Natal. Nessa época, era relativamente
fiel ao Miss Dior, ao Dioríssimo, e outro que não me lembro. E
a uma preciosidade, L'Interdit by
Givenchy, “o original, que a Audrey
Hepburn criou” como explicou o amigo que mo ofereceu, comissário de bordo da TAP.
Faltavam três dias para a festa da família e ele não tinha nenhuma. Tinha
várias ex-mulheres e uma porção de filhos. Carlos Alfredo. Grande coração. Na
época, os jornais eram muito românticos e ser repórter implicava meter as mãos
no sangue e nas tripas do mundo. Ele era dessa tribo. A 24 de Dezembro, quando
toda a gente se preparava para voltar para casa mais cedo, ele e uns quantos
náufragos de famílias à deriva, ofereciam-se para as reportagens temáticas. O
Natal na prisão. Nas urgências de um hospital. A Consoada na Sopa dos Pobres. Coisas
assim. Três anos antes, tinha ido para o Linhó e até ficou amigo de um recluso.
No ano seguinte, já com este em liberdade, acompanhou-o na sua qualidade de
ladrão, produzindo uma emocionante reportagem que lhe ia custando a liberdade. O
outro convencera-o a ficar à porta, “a controlar”, enquanto esvaziava o frigorífico
de uns ricaços do Restelo que tinham ido passar a quadra ao Rio de Janeiro. “Assobias
se houver crise. É rápido. Bifes, marisco, vinho, guloseimas para os putos.” O
pior é que, agarradas aos comes e bebes, tinham vindo pulseiras, anéis,
relógios, colares, no valor de uma pipa de massa. Carlos Alfredo defendeu o
segredo profissional com unhas e dentes, mas acabou indiciado como cúmplice.
Salvou-o a boa vontade do ladrão, que devolveu as jóias.
Este ano, pensara noutra temática: “Vou consoar com uma mulher da vida.
Levo peru, rabanadas, fruta cristalizada, espumante. Até lhe comprei um
presente. Uma água-de-colónia.” O chefe de redação encolheu os ombros:
⸺ Pagas do teu. E vê lá se não levas uma coça por conta. Parece-me tão… esquisito.
Na edição de 26 de Dezembro, porém, a reportagem dele não constava. Dia
27, quando voltei ao jornal, soube que tinha metido folgas atrasadas e que não devia
aparecer antes do fim do ano. Ao almoço, um camarada de redacção ⸺ nunca se
dizia “colegas”, porque “colegas são as putas”⸺ contou a história. Tinha-o
encontrado, nessa desolada madrugada. A mulher da vida recrutada no Intendente,
começou por fazer uma cena. Depois lá foi com ele para uma pensão, mas sempre a
resmungar, “filho, tu tens uma tara qualquer”.
Ele tratou de tudo. Abriu a garrafa, juntou as mesinhas de cabeceira e
cobriu-as com uma toalha. Até levava velas: “Vai daí, ela desatou a beber e… apagou”. Rimos muito. E ele sem aparecer.
Dia 30, uma rapariga foi ao jornal, à sua procura. Cara angulosa, pele branca e
desmaiada, casaco pelo de coelho, saia comprida, roxa, botas cambadas. Olhos de
quem tem 527 anos. Atendia-a eu. “Família?”, perguntei. Ele tinha tantas
ex-famílias…
⸺ Amiga – respondeu ela. E acrescentou: ⸺ quer-se dizer.
Abreviando, era a tal da
consoada:
⸺ Um homem tão bom. Tão delicado, poças. Deu-me um perfume. Deixou um
monte de dinheiro. E eu, em jejum. Dois copitos e faz de conta que é o meu
homem, faz de conta que somos uma família. Mais um copo. Tudo tão porreirinho, coiso
e tal. Faz de conta. Tirei os sapatos, doíam-me os pés…
Calou-se, o rosto subitamente cor-de-rosa, olhos aflitos e envergonhados.
Depois acrescentou:
⸺ Lixei-lhe o trabalho, não foi? ⸺ Estendeu-me a mão, com um papel:⸺ O
meu número de telefone. Ele que apareça no Ano Novo. Conto-lhe a vida toda. Até
pode escrever um livro!
Acompanhei-a à escada. Começou a descer, depois virou a cara para cima.
Sorriu, era quase jovem e inocente outra vez:
⸺– Desta vez, levo eu o peru.