quinta-feira, outubro 07, 2010

Leonora, pós Nair, um Poeta em carne viva

A Nair via a descer a rua do Século. Trazia uma pasta debaixo do braço. Tinha o rosto fechado e duro. Quando lhe disse:
- Olá Nair! Vais vender os teus poemas para o Chiado? Estás tão séria.
Ela precisou de uns micro segundos para me focalizar e reconhecer:
-  Não estou séria, estou a meditar. E já não me chamo Nair. A Nair morreu com a minha mãe. Sou Leonora.
- Desculpa, nunca me falaste nisso.
- Nunca houve tempo. Queres ler um poema meu? Não pagas nada por ler um poema. E sim, vou para o Chiado vendê-los.
- A polícia não te chateia?
- Chateia. Tenho de lhes trocar as voltas. Uma vez até dei alguns ao polícia, para ele ler. Estava perturbado porque a lei, espressamente, não contempla os poetas nessas proibições. Perguntei-lhe se tinha gostado. Ele disse «por acaso até gostei, sim senhor!». E eu «quer comprar?»
- E ele, comprou?
- Não. De maneira que eu recolhi os meus poemas, e disse senhor guarda, agora desculpe mas tenho de ir trabalhar. E virei-lhe as costas.
- Mas os músicos podem. Tocam pela rua, as pessoas deitam moedas!
- Não, não podem. Só os pedintes, que chateiam toda a gente, e nunca dão nada em troca, é que podem andar a pedir. Sobretudo os romenos, os mais agressivos de todos. A esses, a policia não incomoda.

Entrámos na Tomtom, e ela disse-me que tinha acabado de ouvir a voz da mãe. Estava maravilhada por ter ouvido a voz da mãe, e eu respondi-lhe que compreendia. Tenho ouvida tantas coisas ao longo da vida, que estou sempre preparada para o maravilhoso, seja qual for a forma como se me apresenta.
- Espera aí - disse ela, a olhar-me fixamente - tu sabes que a minha mãe morreu, certo? Bom, pois eu ouvi-a na rádio. Hoje, ao meio-dia. O jingle da Rádio Renascença, aquela voz de cristal, é dela.
Chegámos ao balcão, ela pousou a pasta, abriu-a e retirou três poemas. Deu-mos para os ler, e passou outros à Mafalda.
Os poemas da Leonora/Nair são sempre de uma intensidade arrasadora. Seja qual for a frequência em que ela se sintonize, e sintoniza em várias, a Palavra sai da sua boca imaculada e pura, feroz e total.
A Leonora/Nair é o unico Poeta vivo que eu conheço. Sei que há mais, mas não me cruzei ainda com eles, a não ser com o Herberto Helder, nos tempos da Notícia de Angola, há varias reencarnações (minhas) atrás. E com o Al Berto, em Sines. Até vivi no Palácio Pidwell que era dos avós dele. Há tanto tempo.
- Os teus poemas são magníficos, Leonora, porque não editas?
- Estás louca? Morria de fome! Assim dá para comer, e viver. 
Começou a rir.
- Sabes que o Bocage fazia o mesmo? Descobri isto por acaso, há pouquíssimo tempo. Ele vendia os poemas no Rossio, e depois ia para as tascas empifar-se. Bebia a poesia toda. Toda.
- Abençoado seja - disse eu,
- Amén - concordou ela.
Depois trocámos as nossas palavras. Ela levou um «André» meu, o último, eu ganhei  três poemas dela.




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«à Manuela clepsidras vertendo
Luz com aquários de Palavras subtis
Transposições da clave
de fá ao Dó da Dor»
 

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