terça-feira, maio 31, 2022

Maria Adelaide Coelho a "louca" mais lúcida da nossa história Contemporânea

 "Qualquer historiador (e eu sou) tem sempre uma ponta de receio quando começa a pesquisar os seus biografados. E se for tudo mentira? E se tudo não passasse de uma farsa bem montada? Que coerência, que inteligência, esperar dos envolvidos neste duelo? E os médicos estariam realmente de boa-fé, ou e à partida, por afinidades de casta, de classe, de sexo até, decidiram antecipadamente que o desfecho, fosse qual fosse a direção do processo, teria de ser favorável ao amigo e companheiro de causas, dr. Alfredo da Cunha? Haveria mesmo uma história de amor entre ambos, Adelaide e Manuel, ou um deles estaria a aproveitar-se do outro?"

Partilho um artigo meu publicado no Jornal Expresso a 16 de Setembro de 2020

Ricos, famosos, cultos, a viverem num palácio. Mãe, pai, filho. Apontados como a família perfeita... 

Já vai na 7º edição

Manuel Cardoso Claro

Uma, entre muitas conferências. Esta na Universidade Lusófona onde a biografia é curricular nos mestrados de Psicologia

Durante o lançamento da obra no Palácio de São Vicente, que me abriu as portas durante largos meses que durou a investigação

A biografia de Maria Adelaide que escrevi com o título de ‘Doida não e não!’ Maria Adelaide Coelho da Cunha foi lançada pela Bertrand em 2009 e relançada em 2018. Fez sucessivas edições. Foi apresentada no Palácio de São Vicente pelo Professor Fernando Rosas na presença de muita gente, e até de descendentes e amigos do casal Manuel Claro e Maria Adelaide (sobrinhos, netos e bisnetos) que só então se conheceram e só então puderam completar o puzzle das esfarrapadas e incompletíssimas estórias de família que cada um ouvira ao longo da vida. Foi comovedor. A imprensa acolheu com muito entusiasmo a história de Maria Adelaide e Manuel Claro. Tive três convites (nestes doze anos) de realizadores que a quiseram levar ao grande ecrã e também à televisão. Nunca conseguiram apoios. No último concurso passámos duas etapas, mas… havia outra proposta que ganhou, com a assinatura de Mário Barroso e o suporte do grande produtor Paulo Branco. Parabéns. Ordem Moral é pura ficção e saudemo-la enquanto tal. Baseia-se numa outra ficção, Doidos e Amantes, romance de Augustina Bessa Luís lançado em 2005. Neste registo, quer por parte da escritora, quer na versão do realizador Mário Barroso, não existe um casal de amantes apaixonados pois Manuel é um bissexual frágil com uma dívida de gratidão à antiga patroa (a quem trata sempre ‘minha senhora’), e Adelaide é uma mulher revoltada que quer vingar-se do marido. Liga-os a amizade e o hábito da estima.

O meu processo de escrita da biografia Maria Adelaide Coelho da Cunha: ‘Doida não e não!’ (Bertrand) foi longo, moroso e exultante. Entre 2007 e 2009 quando o livro foi lançado no mesmo palácio de onde Maria Adelaide fugira quase cem anos antes, tive acesso a relatórios médicos detalhados, processos policiais, registos de tribunal, actas, bilhetinhos, cartas, diários, fotografias, livros publicados na época, assinados por psiquiatras, advogados, jornalistas, gente directa ou indirectamente envolvida na trama. Passei muitas semanas a consultar jornais, sobretudo A Capital e o Diário de Notícias de 1919 a 1923. Cruzei informações. Recolhi testemunhos orais, pois conheci pessoas que ainda chegaram a conhecer Maria Adelaide depois dela ter saído do Hospital Conde de Ferreira. Visitei os locais onde tudo isto se desenrolou. E, passei meses e meses na biblioteca da Senhora de São Vicente a ler e anotar de fio a pavio a documentação encontrada no fundo falso de uma escrivaninha. Eram as peças que Alfredo da Cunha coligira, para montar a teia da sua defesa e do seu ataque. Tudo, e por iniciativa dos novos donos, devidamente catalogado e arrumado em pastas. Centenas de documentos. Muitos milhares de páginas. Fascinante.

Qualquer historiador (e eu sou) tem sempre uma ponta de receio quando começa a pesquisar os seus biografados. E se for tudo mentira? E se tudo não passasse de uma farsa bem montada? Que coerência, que inteligência, esperar dos envolvidos neste duelo? E os médicos estariam realmente de boa-fé, ou e à partida, por afinidades de casta, de classe, de sexo até, decidiram antecipadamente que o desfecho, fosse qual fosse a direção do processo, teria de ser favorável ao amigo e companheiro de causas, dr. Alfredo da Cunha? Haveria mesmo uma história de amor entre ambos, Adelaide e Manuel, ou um deles estaria a aproveitar-se do outro?

Li Doidos e Amantes (2005) da escritora Augustina Bessa Luís, obra dedicada à sua amiga Maria Marcelina de Matos, bisneta de Júlio de Matos (um dos psiquiatras que mais mal visto sai de toda esta trama). No seu romance a história de amor é completamente desvalorizada. A confirmá-lo a escritora numa grande entrevista a Fátima Vieira («Uma intriga tenebrosa», Pública, 29/01/2006:51-57) negou com toda a veemência a hipótese de que entre Maria Adelaide e Manuel Claro tivesse existido uma paixão. Para ela o que havia era «um episódio de fuga». Maria Adelaide poderia estar «enamorada de uma mulher», apontando a sua ligação com figuras assumidamente lésbicas, nomeadamente a uma redactora d’A CapitalQuanto ao Manuel Claro, que Bessa Luís não acredita ter sido o companheiro da vida de Adelaide, viria a ser apenas «um acompanhante fiel e dedicado, grato à patroa que lhe serviu de enfermeira». Afinal, o motorista que «só se preocupava em ter sapatos bonitos», poderia ser «ou um consumado patife, ou um solitário, possivelmente um homossexual que encontra em Maria Adelaide a figura da mãe sonhada»». Quanto à fuga do Palácio, a escritora defende que Adelaide teria tentado escapar a uma espécie de claustrofobia social, não descartando a possibilidade de «haver uma paixão proibida, um perigo qualquer...».

Quando dei por mim, tinha entrado pela vida daquelas pessoas: Maria Adelaide, Alfredo da Cunha, Manuel Claro, José da Cunha… e os repectivos afins. Avassalador. Tornei-me mais do que testemunha, vivenciei, procurando manter sempre a imparcialidade. Eu não queria julgar ninguém. Eu queria saber como é que tudo se tinha passado, e porquê. Com todo o rigor que um labor historiográfico exige. E, como tal, prossegui um trabalho de ‘garimpo’ que foi, como é sempre, bastante árido e muitíssimo minucioso. Amarrando a imaginação que, aqui, só me poderia estorvar. Mas encontrando verdadeiros tesouros. Fulgores. Manipulações da verdade. Revelações.

Nesta mesma entrevista, Augustina duvida, em grande medida, que as cartas publicadas no jornal A Capital e assinadas por Adelaide Coelho, fossem da sua autoria. Ou a sê-lo, só parcialmente, motivo pelo qual «o texto está cheio de vulgaridades como se fizessem parte duma linguagem doméstica, adquirida com as empregadas da casa.» É que ela – Maria Adelaide – «sentia-se bem na sua vida laboriosa e sem pretensões, fazendo as camas e subindo as bainhas dos vestidos» e era, «sobretudo, uma boa criada». Finalmente, conclui: «Se assentarmos no facto de que Maria Adelaide era medíocre, entramos num terreno menos espinhoso do que se tivéssemos de a achar interessante. O marido há muito que se tinha apercebido da vulgaridade da sua mulher.» Até porque, conclui a escritora, em matéria de cultura «era uma figura decorativa».

Estas afirmações de Bessa Luís provocam a reação indignadíssima de duas senhoras que tinham conhecido e privado longamente com Maria Adelaide Coelho da Cunha e Manuel Cardoso Claro. De imediato, Maria Manuela Delgado de Oliveira e Maria Elisa Seara Cardoso Perez escreveram para o mesmo jornal, e os seus extensos contraditórios foram publicados na íntegra na revista Pública a 19 de Março de 2006. Nunca foram minimamente desmentidos. Dois anos mais tarde, tendo conhecimento que eu estava a escrever sobre Maria Adelaide e Manuel Claro disponibilizaram-se a partilhar comigo tudo o que sabiam sobre uma história que já começara a ‘garimpar’.

Em 11 de fevereiro de 2008, eu estava no Porto a escutar Maria Manuela Delgado, uma referência no panorama da arqueologia portuguesa, cujo nome está ligado a projectos tão emblemáticos como Conímbriga. A arqueóloga, que ainda não era nascida quando Adelaide saiu do manicómio, conheceu-a desde que nasceu, já que foi em casa dos seus avós que ela esteve escondida. O advogado Bernardo Lucas pedira à sua avó se ela «se importava de receber esta senhora na sua casa por três ou quatro dias». A senhora acedeu sem uma hesitação sequer. «Não foram quatro dias, foram os quatro anos em que o Manuel esteve preso. Quando ele saiu da Cadeia da Relação, Maria Adelaide saiu com ele. E foram viver juntos» revelou-me Manuela Delgado.

Na descrição da arqueóloga, «Maria Adelaide era uma senhora sempre interessante, tinha um encanto todo interior e uma enorme cumplicidade com o Manuel. A história deles é excepcional. Estiveram juntos até ao fim. Ele era um homem culto, muito bonito e muito respeitado entre os seus colegas». E as cartas, para A Capital? «Era o meu pai, que na altura tinha 17 anos e andava no Conservatório de Música, que as punha no correio!» contou-me ainda Manuela Delgado que tratava Maria Adelaide por Lalá e a considerava como tia, acrescentando: «Vou-lhe contar um segredo. A família, que não tinha desistido de a voltar a internar no manicómio, nunca soube do seu paradeiro. E ela, para não ser descoberta, ia disfarçada de lavadeira visitar o Manuel, durante os quatro anos em que ele esteve preso. Punha uma saia rodada, uma rodilha onde assentava a trouxa na cabeça, uns panos brancos, grandes, dobrados em quatro e atados em nós, onde estava a roupa, e ia e vinha da cadeia. Nunca desconfiaram dela. Mas eu nunca pude antes contar uma coisa dessas como lhe estou a contar agora a si.»

A outra senhora que reagiu indignada às entrevistas e ao livro de Augustina, foi Maria Elisa Seara Cardoso Perez que era filha de Paulina e Fortunato Seara Cardoso, proprietário e diretor do Comércio do Porto. Veio a conhecer Maria Adelaide no Inverno de 1942, em casa dos pais, na rua da Alegria, Porto, onde esta se reencontrou com o filho, José Coelho da Cunha, 24 anos após a sua saída do Palácio de S. Vicente, em Lisboa. Maria Elisa, à época com 15 anos, viu, da janela da cave, aquela senhora pequenina, de cabelo todo branco, mas muito direita e com uma dignidade tocante, avançar ao encontro do filho que não via há tanto tempo, posto o que ambos se encerraram no salão da casa, onde estiveram uma tarde inteira à porta fechada. «Maria Paulina, minha mãe, tinha uma grande consideração e estima por Maria Adelaide de quem se tornou amiga e com quem tinha muitas e longas conversas.»

Mas entre aquele estranho casal… seria amor? Maria Elisa Perez respondeu-me: «Sem a menor dúvida. Maria Adelaide contou à minha mãe que encontrou no Manuel Claro o carinho e o respeito que o seu marido, Alfredo da Cunha, nunca lhe dera.» Estes e outros testemunhos e todos os factos que recolhi provaram-me que, embora na curva descendente da idade, Maria Adelaide continuou a ser uma mulher reconhecidamente encantadora e sedutora sem esforço. Era culta, e teve educação primorosa. As cartas da professora dela e dos irmãos enaltecem a sua inteligência. E o Manuel, para além de ter sido um homem muito atraente (as fotografias provam-no e os testemunhos confirmam-no) era inteligente, sensível, culto – nunca deixou de ler e era amigo pessoal de Raul Rego -- e amou indubitavelmente esta mulher a quem se dedicou para o resto da vida. Não há o menor indício que aluda à sua imaginada homossexualidade e muito menos à sua pretensa fragilidade. O Manuel era um homem forte e de fortes convicções.

Por fim, aos 74 anos, Adelaide viu-lhe ser retirado o rótulo de louca-lúcida. Há muito tempo, porém, que deixara de ter o poder policial à perna. Com o Manuel, conseguiu refazer uma vida com muita dignidade e até algum desafogo. Junto do seu antigo motorista, Maria Adelaide encontrou a ternura e o afecto que o marido nunca lhe soube dar, segundo testemunho de quem os conheceu de perto. Amou-o até à morte. Mais novo, o companheiro sobreviveu-lhe quinze anos. Nunca casou. Nas palavras de quem os conheceu de perto, «Maria Adelaide foi o amor da vida dele».

Aos 74 anos, já livre do rótulo tremendo de "louca". 

Suportada por toda uma investigação de fundo, a minha biografia de Maria Adelaide, que é posterior à ficção de Agustina, revela uma história como raramente encontramos. É improvável e tem tudo para correr mal. Mas aquele era um grande amor de gente grande que enfrentou e resistiu a todos os ordálios com uma imensa dignidade, num registo onde a realidade ultrapassa largamente a ficção. Depois do que publiquei sobre a vida de Maria Adelaide e de Manuel Claro, o filme Ordem Moral, embora se trate de uma ficção, ignora perigosamente algumas evidências entretanto reveladas. Torna-se assim um arriscado exercício de negação dos valores que estas pessoas defenderam, com um custo demasiado elevado para serem obrigadas a continuar a pagar juros indevidos

Sublinho, a finalizar, que não deixa de ser muito curioso o autêntico volte face que, na época e através da sua defesa literária, Maria Adelaide conseguiu produzir suscitando o favor do público, numa altura em que não era invulgar, nem sequer mal visto, que um marido lavasse a honra com sangue. Por fim, já só no círculo muito restrito de amigos do casal, e dos médicos que a tinham dado por louca, persistia a ideia de que ela enlouquecera. Mesmo das fileiras da própria ciência, e até, da jurisprudência, junto da esmagadora maioria dos que não estavam directamente envolvidos no caso, já não havia dúvidas de que a psiquiatria, que promovera tantos benefícios em prol da saúde mental das populações, conquistara aqui uma desonrosa, e desnecessária, referência. Em carta a Alfredo da Cunha, de 18 de Agosto de 1920, o senador Júlio Ribeiro da Silva refuta a «loucura lúcida», como «um paradoxo que os médicos alienistas inventaram». E acrescenta: «não haverá criminalista capaz de me convencer que um homem boçal, inculto, grosseiro, sem delicadezas de espírito, nem agudeza de inteligência, nem primores de educação, seja capaz de seduzir uma mulher superior, requintadamente artística, e cheia de qualidades. [Portanto] não se trata de uma doida, nem de um sedutor […]. E creia V. Exª que com excepção de um advogado meu amigo, aliás distinto, com quem discuti o assunto, ninguém, absolutamente ninguém, encontrei de opinião diferente.»

https://expresso.pt/opiniao/2020-09-16-Ordem-Moral-e-Doida-Nao-e-Nao-a-historia-de-Maria-Adelaide-Cunha-continua-a-gerar-controversia


domingo, maio 29, 2022

Cabinda - Floresta do Maiombe, Junho 1974

     Esta é uma memória de uma memória. É um instantâneo extra catálogo da reportagem que fui fazer para a revista Notícia de Angola. Foi tirada em 74, Cabinda, floresta do Maiombe, por onde tenho andado a passear com a minha amiga Isabel Valadão. Somos irmãs há muito anos e temos também muitas memórias juntas a partilhar. Conhecemo-nos por lá. Em Luanda, Angola. Reencontrámo-nos por cá, em Lisboa por alturas do lançamento de um dos meus livros. Tinham-se passado décadas, mas o tesouro da nossa amizade estava intacto. Um, dois anos depois, ela começou a publicar, estreando-se no romance literário com Loanda, Escravas, Donas e Senhoras. Eu tinha feito História Ramo Científico (Nova) ela, História de Arte (Clássica). E tinha o tal livro na gaveta que a "obriguei" a tirar cá para fora. Foi o recomeço. Reganhámos chão e recuperámos raízes dispersas. Reencontrámos e partilhámos outra gente muito querida desses tempos outros. Tertuliamos. Descobrimos que ambas temos um amor incondicional pelos nossos companheiros de quatro patas. Privilégio.

    E agora, temos feito outras viagens.


Cabinda, Junho 1974, em reportagem para a revista Notícia de Angola


    Portanto aqui estava eu, fresca como uma alface tripeira, numa reportagem que teve incidentes dignos de nota. Assustadores. Exultantes. A liberdade estava a caminho. Foi depois de Abril. Esta imagem integra o conjunto de fotografias que ilustram as (outras) memórias narradas em Moçambique para a Mãe se lembrar como foi um livro que tem corrido mundo e que a Mãe ainda foi a tempo de ver impresso

❤

quarta-feira, maio 25, 2022

Todo o fascínio da arena

     "Sabes, amor, porque caminhamos em círculos? Caminhamos em círculos porque somos cópias de um molde inicial, ou de muitos moldes iniciais, à procura do útero que nos deu origem. Vou-te dizer ainda mais. Todo o fascínio da arena enraíza aí. Foi quando percebemos, apesar da nossa cegueira e precisamente por causa da tragédia de sermos cegos, que o jogo sempre foi de vida, para os deuses, de morte, para nós. Foi também quando julgámos que através de um sem fim de cultos sacrificiais poderíamos apaziguar cóleras politeístas de raiz matricial comum, enganando a morte, a nossa, com a morte de muitas vítimas, num cenário perfeito.

    O círculo. 

[...]

 Teatro grego de Dodona (sec. III a.C.) no sítio arqueológico de Dodona, na vizinhança do monte Tomaros, onde se encontram  as ruínas o famoso santuário e oráculo de Zeus.

    Ora, não sendo o círculo de que a serpente guarda o registo, a encerrar em si a perfeição do indiferenciado, e não sendo esta a de um corpo de homem, a mais desejada das formas porque a mais rara do universo (e não me perguntes como o posso afirmar com tamanha convicção pois sobre esse conhecimento cai igualmente o véu do segredo), a forma perfeita é a do Andrógino. O molde perdido de uma completude paradisíaca que tentamos refazer, de vida em vida, de corpo em corpo, de amor em amor, para conseguirmos escapar da condenação ao círculo pela vertigem da espiral. Como tu e eu temos feito sempre, já nem sei desde quando, na nossa história de dois que foi sempre de tantos.

    Ora também sucede que, nesse caminhar, somos impelidos para a repetição de narrativas primordiais – sempre as mesmas. O jogo das mutações só aparece no momento em que irrompe a desconcertante, a enigmática, a apaixonante variável, que veio abanar até aos alicerces as relações entre o Céu e a Terra. O princípio da incerteza, golpe fatal na monótona repetição das sagas celestes, fomos nós, Criaturas, que o desferimos. Trouxemos a mistura – lembras-te? – o terrível, porque sempre imprevisível, jogo da mistura.

    Todos os tabus do sangue, todos os preconceitos de raça que se estendem aos preconceitos de casta, entroncam aí, no medo da mescla que começou quando "os filhos de Deus" se enamoraram pelas tão formosas "filhas dos homens", nelas gerando a amaldiçoada raça dos gigantes. Outros contam a mesma história com uma ligeira variante: naqueles dias, os filhos de deus conheceram as filhas dos homens – "as quais lhes deram filhos" – os Nefilins. E eram os «varões de renome da antiguidade» que andavam sobre a terra."


em Xerazade, a última noite, 2015, Bertrand editora, pp. 16-18.



 

segunda-feira, maio 23, 2022

Sempre que entro num teatro

 Evocando palcos e saudando a arte maior. O Teatro

    "[...] Revelo-te a sacralidade no profano viver. 

Terei de começar por contrapor ao mito da Caverna o paradigma do palco. É o mesmo olhar, mas na direcção inversa. Da Caverna, contemplávamos as sombras reflectidas nas paredes irregulares e conferíamos-lhes vida autónoma. E porém, aquelas ilusões criadas pela luz que rompia a escuridão matricial do túnel eram o que mais próximo da realidade exterior podíamos alcançar. Cá fora, fora do nosso alcance, derramava-se a intolerável claridade sob o dossel da infinitude celeste cuja visão nos enlouqueceria. Precisámos de tempo, para enfrentar uma e outra. Quando o conseguimos, rastejando para fora ao encontro do que passámos a considerar a realidade em si, perdemos o acesso às origens.

    E continuámos presos.





    Já o teatro propõe-nos o caminho inverso – o regresso ao útero da história. A cortina só se abre quando o público mergulha na escuridão. É então que tem início o ofício sagrado, já que o que se passa no palco, iluminado por velas, tochas, reflectores, holofotes ou luminárias, é sempre um exercício que busca religar a humana transcendência à sua fugidia existência. Parece-te excessiva esta descrição de um espaço que, para muitos de nós começou num anfiteatro ao ar livre, fosso de orquestra com altar de sacrifícios, e um pórtico que dava para o espaço cénico? Engano. Em todas as culturas, o teatro é sagrado desde a matriz. Continua a sê-lo por mais desvirtuado que se nos apresente. Recordo-te ainda que num desses anfiteatros de bancos de pedra, ou seriam ainda de madeira?, nos encontrámos. Sei lá porquê, sei lá como e sei lá quando.

    Lembras-te, amor?

    Eu não. Mas sempre que entro num teatro, seja qual for a sua dimensão, sinto um frémito de reverência. Não pelo espaço em si, mas pelo que ele comporta, guarda e permite transpor. Sentia exactamente o mesmo no tempo em que troupes de saltimbancos, palmilhando o mundo de terra em terra, levavam esta magia no bojo das suas miseráveis carroças de mulas, que, num desdobrar de tendas, numa fanfarra de músicas e num artifício de corpos e adereços, pelo poder sagrado da palavra devolviam à vida enredos de comédia ou tragédia, que ignorados demiurgos haviam engendrado. Quem eram eles? Nunca sabíamos. Não queríamos realmente saber. Não eram os autores das histórias que nos importavam."

    
Em Xerazade - A Última Noite, Lisboa, Bertrand Editora, 2015, pp 9-10. 

Comentários


sábado, maio 21, 2022

Mil beijos de tentáculos verbais

Pudera eu ultrapassar as minhas próprias fronteiras e ser mais do que ubíqua, ser inteira e total e abrangente para chegar a tudo, a todos, neste banquete da vida a chamar por nós de todos os lados, mas não sou nada disso e assim deito-me muito quietinha e escrevo, como se as palavras pudessem valer mil braços e mil beijos de tentáculos verbais até ao princípio e ao fim do tempo e às profundezas do espaço. mas entretanto dá-me um sono que nem vos conto.




Créditos imagem: em Ram Dass, "
Unconditional Love Really Exists", em AWAKIN.ORG
consultado a 21/05/2022,


"This love is like sunshine, a natural force, a completion of what is, a bliss that permeates every particle of existence. In Sanskrit it's called sat-cit-ananda, “truth-consciousness-bliss,” the bliss of consciousness of existence. That vibrational field of ananda love permeates everything; everything in that vibration is in love. It's a different state of being beyond the mind." 

terça-feira, maio 17, 2022

Comida, interditos alimentares, e outras memórias assim

 Até ir viver para África, os interditos alimentares de que me recordo eram apenas e só os relacionados com os nossos próprios gostos. E mesmo esses, dependiam muito da aceitação por parte dos crescidos, para quem "o menino ou a menina não têm querer". Ter comida no prato e várias refeições por dia, era um luxo e um privilégio pelo qual devíamos estar muito gratos com "tanta gente a morrer de fome no mundo e no mundo perto de nós". Preferências, gostos e desgostos, eram "manias" ou "esquisitices".


Aos sete anos, deixei de comer iscas. Um dia, depois da escola, cheguei a casa, cheirava muito bem, perguntei o que era o almoço, são iscas, olha que bom, fui mudar de roupa, tirar a batinha, vim para a mesa. Á primeira garfada, o vómito. Insisti. Outra vez. A carne estava cheia de "nervos", a textura era repugnante e cheiro por baixo do cheiro "bom", era horrível. Oh, toda a gente comeu e ninguém se queixou, insistiram a mãe e a Maria. Eu, que até então gostava, vinha com fome e queria muito gostar. Mas o meu corpo rejeitava aquele alimento. A menina deve estar doente. E estava, de enjoo e não consegui comer mais nada. Fui para a cama e tudo. Uma semana depois, a mesma cena. Gosto tanto do cheiro, disse eu, ao menos podia comer as batatas e o resto com o cheirinho. Mas, adubadas com o molho do fígado, provocaram-me o mesmo efeito, em pior. Graças à insistência, dessa vez vomitei mesmo muito. Estive na cama a tarde toda, a dormitar e a beber cházinho, não consegui jantar, e esta rejeição foi aceite como facto consumado. Era por demais óbvio que não estava a fazer "fitas". Era outra coisa.


Consensualmente, agora que penso nisso, recordo que havia "coisas" que não entravam nos nossos menus, apesar de vivermos e sermos do Porto, menos a mãe. Cabidela, por exemplo, estava fora de questão. E tripas, nem pensar. Nem sequer se falava ou pensava no assunto. A mãe ser lisboeta talvez tivesse alguma influência? A criada da minha avó, quando só nós, crianças, a estávamos a ouvir, disse algo neste sentido... mas, e mais uma vez, não se falava destas e de muitas outras coisas. Até ao dia em que, num almoço em casa de uns tios, demos por nós, crianças e pais, a olhar consternadíssimos a travessa fumegante do arrozinho vermelho escuro e espesso, com os pedaços da galinha a olharem para nós. Foi horrível. De repente, ficámos sem apetite. A começar pela mãe que não tocava "nisso", mas que educadamente tentou disfarçar, o que foi difícil porque o seu prato voltou praticamente intocado para a cozinha. O pai, que desde os três anos não comia nada que tivesse "pêlos" ou "penas" nem sequer se serviu. Mas este tabu estranhíssimo fica para outra estória, que vale a pena recordar.


Já em África, convivi, convivemos todos, com muitos outros tabus e interditos, de forma tão pacifica que o tema nem era bem tema. Era facto consumado que muçulmanos não comiam carne de porco, por exemplo, e hindus não tocavam em vaca. E nenhum deles comia animais que não fossem abatidos ritualmente. Africanos islamizados (no Norte de Moçambique eram muitos) seguiam os mesmos preceitos. Mas comiam peixe seco coisa que só mais tarde, em Luanda, aprendi quão delicioso era. Então, era tudo muito simples. Nós, brancos de primeira ou de segunda, comíamos porco e vaca, mas não insectos, e peixe desde que fosse fresco ou enlatado, como o atum ou as sardinhas. Aparentemente, só os chineses comiam tudo o que mexia, mas nos restaurantes que frequentávamos, nunca havia cão ou gato no menu. Nem cobras ou gafanhotos.


O processo pessoal, desde muito jovem ainda, de me ter começado a afastar de alguns alimentos, acabando por retirar desde há uns anos, produtos de origem animal da minha alimentação e vestuário, não foi linear nem repentino. Foi até muito progressivo. A alimentação sempre foi motivo de cuidado e atenção da minha parte. Houve uma época mais maluca, em que recém chegada de África e completamente à nora com a sociedade que vim encontrar, onde me sentia sempre tão horrivelmente deslocada, resolvi enveredar pelos caminhos árduos da macrobiótica, cuja base era o arroz integral, cozido a ponto de queimar o fundo da panela ou do tacho de barro. Cada garfada devia ser mastigada, pelo menos, 50 vezes. Este era um processo iniciático. Libertador. Com muita prática, até era místico, sei lá. Mas também era horrivelmente desinteressantes, que tristeza. Mas eu estava aí, e só não me pus a caminho da Índia, aos 23 para 24 anos, para me enfiar num ashram, meu grande sonho!, e encontrar a libertação do ser e outras coisas assim, porque tinha a meu cargo dois pequeníssimos seres que não tinham culpa nenhuma dos meus desacertos, infelicidades e buscas espirituais. Portanto, mesmos nos tempos mais estritos da macrobiótica, a eles nunca lhes faltou o que eu achava que era vital para crescerem fortes e saudáveis, como no anúncio das vitaminas. Carne, peixe, sopas de legumes sempre!, fruta, muito poucos doces e só de vez em quando. Refrigerantes, mesmo a célebre Coca-Cola, estavam proibidos na nossa casa. Se bebessem em casa dos outros, não fazia mal porque era muito esporádico.


Em Santo André, onde vivemos, vim a saber que um dos nossos vizinhos dizia que éramos drogados, porque comer assim e não beber coisas que todos os pais dão aos filhos e a si próprios, só mesmo de drogados. Ainda hoje isto me dá tanta vontade de rir. Agora, e este "agora" tem vários anos, conheço mães e pais de filhos vegetarianos ou veganos, onde todos seguem esses preceitos e são super saudáveis. Em Portugal e fora, por exemplo, na Escócia ou no Brasil. Mas nesses tempos do Regresso, o único exemplo que me vinha à cabeça face à regimes fora da caixinha impostos às crianças, era aquele bebé amoroso, que parecia ter oito meses mas já tinha três anos, e nem sequer conseguia pôr os pés no chão. A imagem que guardo é dele: um menino apático, minúsculo, da idade dos meus filhos, dois e três anos, parecendo ter pouco menos de um ano, sempre sentado num carrinho empurrado pelos pais enlaçados, dois seres diáfanos, vestidos de branco, novíssimos, lindíssimos e irreais, que seguiam escrupulosamente o regime macrobiótico, que impunham à criança. Ao fim da tarde, faziam meditação diante do mar, enquanto o filho morria de fome e não fazia nada, porque nem forças tinha para segurar a cabeça no pescoço.


Salvou-se. Soube eu muito mais tarde, através de uma amiga minha, médica, dos tempo de Luanda, que foi a jovem pediatra indigitada para tomar conta daquele caso extremo e tão extraordinário. A Mina, estudou macrobiótica a fundo para poder dialogar com conhecimento da causa e arranjar soluções que fossem consideradas legitimas e não ofensivas para os pais. É tão irónico pensar que os avós da criancinha que morria de fome, eram ambos médicos famosíssimos, e que a família tinha muito dinheiro... Felizmente, entraram em cena a tempo. O processo foi muito discreto, doce, consensual com todos os envolvidos a tomarem em consideração o superior interesse do bebé, que já não era tão bebé. A minha amiga contou-me tudo. Fica para a próxima.


MG, memórias.

Pode ser uma imagem de comida
Gosto
Comentar
Partilhar