Sobre Xerazade - a última noite, partilho , evidentemente autorizada, o texto de opinião de um leitor que me acompanha há vários livros. Agradeço profundamente a Manuel Carlos Marques Pinto o entusiasmo, a grande generosidade e o trabalho a que se deu, para comentar tão aprofundadamente a obra. MG.
Europa e o Touro |
Leimotiv
Não
fiquei com quaisquer dúvidas, após a leitura entusiasta de “Xerazade”, que estamos
perante um “Leimotiv” de ardor humano (talvez paixão), com tudo de grandioso e
sublime que lhe é intrínseco, mas, igualmente, misterioso e sedutor. A paixão entre esses
dois amantes, dois amigos, tornou-se no centro da narrativa, do romance
funcionando como “um coro de tragédia
grega, sublinhando a acção e sugerindo interpretações e propósitos onde as
personagens os não encontram.”
Na
realidade, julgo ter percebido bem este jogo de xadrez que aqui se vai
desenrolando e que, no fundo, é a vida, onde muitas vezes somos peões ou outras
vezes rainhas e reis montados em cavalos brancos, mesmo que sejamos apanhados
em xeque-mate nas voltas que o jogo dessa vida nos apresenta.
Não foi, com toda a certeza por acaso, que o romance tem o nome da princesa das
Mil Uma Noites, Xerazade, pois julgo entender que é uma homenagem muito sincera
a todas as mulheres que sempre desejaram e desejam serem felizes e
independentes. Haverá mesmo um certo feminismo, mas muito delicado e discreto
(sem necessidade de queimar objectos…) que atravessa, aliás, todo o
romance."
Começo
por comentar como cruza tão bem, com palavras tão sublimes o que paira além de
nós, ou até ainda está entre nós, da mitologia (da pré-clássica ou clássica)
que nos deslumbra, dos deuses mais cativantes que nos cercam e que , mesmo
involuntariamente nos conduzem, por vezes, mais do que as amarras dos factos
históricos! Como são bonitas as lendas, os mitos e como ultrapassam, em tantas
ocasiões, em densidade interior, a própria História? “Dos deuses vem todo o engenho que
dá as qualidades aos mortais. Eles
nos criam artistas, fortes de braços , ou eloquentes”, como diziam os gregos, na procura incessante da
virtude, excelência ou conhecimento. Como teve a lucidez de valorizar esse
nosso passado mítico tão rico (com exemplos tão variados que enriquecem
substancialmente toda a trama narrativa) sabendo que temos sangue de tantos
cruzamentos e que bebemos directamente de tantas heranças culturais!
Orfeu trazendo Euridice dos infernos |
Gostei,
igualmente, da forma como integra o tempo (que por vezes pode ser algoz da
fantasia) que liga todos os episódios nesta sucessão de quadros vivos ou
sonhados, mas nunca tendo deixado que o próprio tempo enchesse de amargos e
desenganos o percurso da existência/vivência daqueles dois seres. Corre
devagar, corre ao sabor de um presente e de um passado, mas corre… como um
fluir de um rio para o mar! “Nada é permanente, salvo a mudança”(
Heráclito).
Mostra ainda
que a vida só é bem vivida torneando o sofrimento, mesmo que , por vezes, seja
bem complicado alterar o tal destino que só os deuses do Olimpo conseguem
escapar! Por isso, os sonhos e as memórias que se vão expressando em forma de
diálogo dos seres humanos protagonistas da narrativa, assentam em raízes bem
ancestrais, mas tornam-na lógica e encadeada com a passagem até pelo mais
trivial e mais terreno: “Sorris. É um
sorriso um pouco triste, mas mesmo assim é um sorriso e é tão bom levar essa
memória comigo” (pág.69); ou quando se tem um coração que sofre, lamenta,
mas compreende ― sem críticas ― a fraqueza humana na hora derradeira (”na vizinhança da morte pediu ao amante que lhe cortasse o cabelo bem
curto, risca ao lado, à homem”(…) (pág.70).
E, no
desenvolvimento deste cruzamento de mitos e realidades ali está com uma marca
muito subtil a referência à sua África
nas imagens das madrugadas quando os javalis “vêm beber ao lago “( pág.64) ou
“(…) depois, quando morremos,
todos desejaríamos ter uma árvore africana , a mais maternal de todas as
árvores , o baobá, por túmulo(…) (pág.79) , provando bem que o cordão
umbilical que há muito se transformou em saudade continua presente, tecendo um
corolário intenso de nostalgias inesquecíveis!
Depois é
todo um romance, onde estão bem patentes tantas referências ao nosso imaginário
de um passado tão rico, mas também de tantos enigmas , venham eles através da
História , dos mitos, ou das nossas memórias : “O rei vai nu”, Ulisses” Inana e Ereshkigal, A História começa na Suméria”, “Dos amores de Afrodite por Marte”, como
a sugerir toda a simbologia (”Que
verdades se ocultam no mito?”pág.21) que daí decorre , onde se entrelaçam
paixão, mistério, fantasia, ódio, presentes , tantas vezes, entre os terrenos!
Ou “Da riqueza dos livros”, porque
vivem connosco… Mas também a música, tão enaltecida em páginas, todas elas, por
sua vez tão musicais, fica a pairar nos nossos sentidos, com uma vibração muito
especial:“a música mora em tudo e em
todos. E está presente até no
silêncio. E, como é sublime esse remate: “É a assinatura da vida” (pág.94); só é pena ― agora acrescento eu ― que haja uns tantos que não saibam assinar.
E da vida passada então fica esse belo
conto “O Flautista de Hamelin”, conto folclórico, reescrito pela
primeira vez pelos Irmãos Grimm e que narra um desastre incomum acontecido na
cidade de Hamelin, na Alemanha, em 26 de junho de 1284, e que encantou tantas
crianças quando os avós ainda tinham tempo e sabedoria para encantar os netos!
Bela e sentida homenagem! Autêntico vale mágico!
E as histórias, as evocações, os diálogos sucedem-se em
quadros que vão do onírico ao real, com base também numa espécie de improvisação
quase oral e quase homérica, de modo que explica o
conhecimento de pessoas e coisas que, quase de certeza, já existiam nas memórias passadas. Por outro lado, consegue,
mesmo tratando-se de um romance, não confundir a particularidade do que vai
descrevendo ― seja na História, na lenda ou
no mito ― com o essencial da narrativa,
dando assim veracidade e vivacidade com o que cruza na sua escrita.
E surgem as admirações por Creta, “Creta é um lugar de infância e voltar à
ilha é uma ideia muito tentadora”(pág.105), pela sumptuosidade de Cnossos ,
como num apelo à História , mas sem se enredar
na sua trama mais complexa.
Ou o mistério da Torre de Babel (págs.130 e 131)
e ambição humana desmedida que nunca mais teve fim segundo o Antigo Testamento
(Gênesis 11,1-9), construída na Babilônia pelos descendentes de Noé, com a intenção
de eternizar seus nomes. A decisão era fazê-la tão alta que alcançasse o céu.
Esta soberba ― que continua tão presente na
nossa sociedade ―provocou a ira de Deus que,
para castigá-los, confundiu-lhes as línguas e os espalhou por toda a Terra.
E depois com
o mesmo entusiasmo e com a mesma cadência de introduzir mais lendas e mitos no
corpo do romance, “somos deuses” (pág.141), aí estão os bárbaros (págs.136 e 137)
e a postura altiva dos clássicos, neste caso, Roma a não entenderem a mão
civilizacional que trouxeram e não apenas o nefasto ; eram aqueles que falavam ―bar-bar-bar.
No capítulo “O Regresso” (págs. 142 a 148) como revela muito bem a
intensidade do diálogo , mas com a simplicidade de uma abertura ao bom entendimento , afinal tão
simples, mas, por vezes tão complicado: “Enfim,
também só as crianças, os loucos ou os miraculosos se conseguem abstrair tão
absolutamente do mundo em redor que não pensam na transitoriedade dos milagres, esquecendo que a vida continua com o seu
pequeno cortejo de misérias” (pág.143).
E que bom foi recordar Hans
Christian Andersen esse fabuloso mágico da palavra, filho de gente bem humilde,
mas que com a sua nobre escrita foi um autêntico aristocrata e cativou tantas
gerações de meninas e meninos! E não tenha dúvidas como é bom voltar à infância,
tenha ela acontecido no frio, no calor, na montanha ou na cidade! Os nossos
partiram, mas os nossos ficaram; estão ali, estão aqui como disse Saint Exupéry
(outro mágico da palavra eterna): “Aqueles
que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si,
levam um pouco de nós”.
E então os Anjinhos (pág.156)
como foram eles importantes nas nossas vidas!
Com os “Portais” ( págs.165 a 172)
encontro aqui um texto muito rico psicologicamente (sobretudo na descrição
daquela protagonista) com afirmações muito realistas que ficarão na memória de
todos aqueles que irão ler Xerazade: “A mulher: loura, olhos cor de avelã, talvez
excessivamente magra, branca, queixo duro, pele de camélia, era de uma
vivacidade que enchia um estádio de futebol vazio, ou transformava um velório numa festa.
“Era daquelas pessoas que só, só com a sua
presença , acendia as luzes de Natal , sem ser preciso liga-las à corrente, e que com a sua inconcebível
energia, era capaz de organizar em menos
de duas horas e na mais soturna das casas uma festa de
arromba , com jantar de vários pratos, música adequada e decoração a preceito” (págs.168 e 169).
Há também grande sensualidade, mas também
sensibilidade ao falar dos sentimentos humanos que podem ser nobres, mas também
obscuros ou misteriosos.
“Alguma vez chegamos a conhecer alguém?” (pág.172).
No capítulo “A
Realidade” (a partir da pág.173) enquadra muito bem o que é a vida, e o que é a
ilusão a que muitas vezes ela nos conduz; somos realmente, em tantas ocasiões,
cegos de tudo, mesmo que tenhamos todos os sentidos a funcionarem. “Então todos os cegos começaram a discutir,
tentando prevalecer a sua verdade , e não chegaram a acordo” ( pág.174).
Por isso, o que é real, muitas vezes nos parece irreal e vice-versa: “ Há histórias a emergir à nossa volta,
aproveitando a escuridão e a tranquilidade para viverem as suas existências
bidimensionais. Simulacros de vidas? Variações em torno das vidas que nós
próprios deixámos para trás? Memórias perdidas que não se resignam ao olvido?” (pág.176).
E ao abordar uma página
dedicada à literatura infantil (pág.176) com a história da Princesa Magalona,
soube avivar , mais uma vez, os sonhos de todos nós e revolver saudades , mesmo que sobressaiam
algumas amarguras nesse sonhar acordado.
E ao passar para as “aventuras e hilariantes de Dom Roberto, do Diabo, o
Barbeiro, o Padre, o Polícia, forcados, bandarilheiros, o Barbeiro, o Padre, o
Polícia, os forcados, bandarilheiros e touros, mais a Princesa Magalona, a
Imperatriz Porcina e a Donzela Teodora, atinge em cheio a juventude de muitos
de nós. Inolvidáveis momentos sempre presentes nas nossas recordações! Acho que
me ainda escuto a rir, rodeado de olhares tão carinhosos e tão cúmplices.
Afinal, onde estão? Por mim, continuo lá, porque a realidade é mesmo “aquilo
em que acreditamos”(pág.184).
Finalmente
leio o capítulo “Não Me Deixes” (a
partir da pág.186). E o que leio e medito? Percebo que quer fechar o círculo maiêutico
como começou, para não se escapar da razão do seu romance: A procura incessante
que o seu interlocutor estivesse sempre presente em toda a narrativa, tornando-se
ele, igualmente, um porta-voz das suas histórias/mitos/mitos/histórias ― tivessem elas as formas que tivessem― mas também das suas angústias, dos seus sonhos, das suas memórias, do seu
acerto com uns salpicos autobiográficos, de um certo erotismo como ritual
pacificador, do alcance máximo das relações homem /mulher/mulher/homem, umas
vezes conseguidas, outras nem por isso, da lógica do mito ― “O mito é o nada que é tudo”(
Fernando Pessoa) ― e da forma melhor do amor, fonte perene da humanidade.
Assim, não
pretendendo com estas palavras um pouco soltas e nunca exaustivas, assumir
qualquer tipo de crítica literária e muito menos de recensão crítica (para as
quais nem sequer estou habilitado), não poderei de expressar aqui os meus mais
sinceros parabéns por esta obra tão bem conseguida: é um romance muito bem
estruturado que facilita a leitura e é revelador de grande imaginação,
fantasia, sensibilidade, cultura e um sentido estético muito apurado.
Lhe auguro,
por isso, triunfante caminho…
Com estima e
consideração,
Manuel Carlos Marques Pinto
Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.
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