«É que as histórias, no teatro, ganham o que mais próximo conseguimos atingir no caminho, a nós vedado, da imortalidade. E em certas actuações, amor, o palco é percorrido por um invisível adejar de muitas asas. Então, os actores deixam-se possuir pelo seu o anjo ou daimon, desculpa não traduzir por demónio porque não o é, e todo o teatro acorda, num despertar tão contagiante que até as sombras que durante eternidades viveram na sombra, emergem do seu torpor e, esfaimadas de aplausos, avançam à boca de cena para sorver a energia inconcebível que se derrama do palco para o público e retorna do público para o palco, acrescida de um milhão de vóltios de alvoroço, maravilha e êxtase.
E
é desta maneira que o teatro nos devolve, em consciência, ao espaço da caverna
do pequeno universo pessoal, cheio de equívocos e lamentos, de risos e
absurdidades, amores e desamores, mortes e reencontros. Mas só poderás perceber
a sua dimensão transcendente, amor, se esperares pelo fim e te deixares ficar
numa plateia que se esvazia de gente. Ou num camarote de onde podes ver a
multidão atropelando-se a caminho da saída. Ou mesmo num dos lugares mais
modestos, de galeria ou galinheiro, de onde a visão do palco provoca vertigens
aos mais sensíveis. A seguir, o que resta? O silêncio. O cheiro. O cheiro
inconfundível de um teatro desabitado.
E
tu. E o palco oculto pela cortina que oculta os engenhos mecânicos que fazem um
palco ser tudo aquilo que nós queremos que ele seja. Uma casa, uma floresta, um
oceano, um dormitório, uma prisão, um descampado, um cenário de guerra, uma
escola, uma cidade, um templo, um quarto de hospital. Onde estão os actores, as
personas que os habitaram, os adereços, a respiração sobressaltada ou indolente
do público, o ponto, o contra-regra, enfim, todas as pessoas dos bastidores,
ocultas e essenciais, a música, a história que te prendeu durante uma fracção da
noite? As palavras mágicas do texto de um demiurgo, que outro demiurgo encenou?
Dormem, é isso.
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