quinta-feira, abril 23, 2015

Do Teatro à Caverna, amor


«É que as histórias, no teatro, ganham o que mais próximo conseguimos atingir no caminho, a nós vedado, da imortalidade. E em certas actuações, amor, o palco é percorrido por um invisível adejar de muitas asas. Então, os actores deixam-se possuir pelo seu o anjo ou daimon, desculpa não traduzir por demónio porque não o é, e todo o teatro acorda, num despertar tão contagiante que até as sombras que durante eternidades viveram na sombra, emergem do seu torpor e, esfaimadas de aplausos, avançam à boca de cena para sorver a energia inconcebível que se derrama do palco para o público e retorna do público para o palco, acrescida de um milhão de vóltios de alvoroço, maravilha e êxtase.

E é desta maneira que o teatro nos devolve, em consciência, ao espaço da caverna do pequeno universo pessoal, cheio de equívocos e lamentos, de risos e absurdidades, amores e desamores, mortes e reencontros. Mas só poderás perceber a sua dimensão transcendente, amor, se esperares pelo fim e te deixares ficar numa plateia que se esvazia de gente. Ou num camarote de onde podes ver a multidão atropelando-se a caminho da saída. Ou mesmo num dos lugares mais modestos, de galeria ou galinheiro, de onde a visão do palco provoca vertigens aos mais sensíveis. A seguir, o que resta? O silêncio. O cheiro. O cheiro inconfundível de um teatro desabitado.

E tu. E o palco oculto pela cortina que oculta os engenhos mecânicos que fazem um palco ser tudo aquilo que nós queremos que ele seja. Uma casa, uma floresta, um oceano, um dormitório, uma prisão, um descampado, um cenário de guerra, uma escola, uma cidade, um templo, um quarto de hospital. Onde estão os actores, as personas que os habitaram, os adereços, a respiração sobressaltada ou indolente do público, o ponto, o contra-regra, enfim, todas as pessoas dos bastidores, ocultas e essenciais, a música, a história que te prendeu durante uma fracção da noite? As palavras mágicas do texto de um demiurgo, que outro demiurgo encenou? Dormem, é isso.

Até ao próximo espectáculo.» 

MG, em Xerazade - a última noite, pp.11-12



  
Summer Festival
Edinbourgh 


domingo, abril 19, 2015

Conselhos a uma jovem escritora?

Tenho muita pena que ela não apareça em nenhuma das fotografias, mas mesmo que aparecesse não iria partilhar o seu rosto lindo e sério publicamente. Tinha uma pergunta seriíssima. «Que conselhos para uma jovem escritora?» Como ela. Intensa, tímida, curiosa, atenta. No final, trazia o meu livro para eu assinar. Aos 14 anos e vai ler Xerazade - a última noite. Já escreveu um livro que, penso, é também guião de filme. Foi na FNAC de Faro, quando ali esteve a falar com leitores, a encontrar e reencontrar amigos. Como a Elza Cunha e o marido, o Luís Bulha e a mulher, a Helena Ralha e a filha, e outros que não conhecia e tive tanto prazer em conhecer.
Foi muito bom.
Em Faro, FNAC

O que lhe aconselhei? Segredo. Silêncio. Porque os sonhos despertam mágoas - em que não consegue sonhar tão longe. E as mágoas despertam rancores. E os rancores acordam a ironia da inveja, essa lamazinha pegajosa que macula as asas e prende os pés no chão da incertezas. É preciso crescer o suficiente para que tal não nos macule, nem magoe... pelo menos tanto. O que lhe aconselhei? Trabalho. Muito muito trabalho. Ser escritor é fazer um pacto com a palavra. Esse pacto é a tempo inteiro. Esse pacto é implacável.

Impossível viver sonhos destes sem compromissos totais.

Ela percebeu tudo.


quinta-feira, abril 16, 2015

«não podia fazer filhos e livros ao mesmo tempo»


Era um senhor muito bom. Só tinha um defeito: não gostava de trabalhar. Passava os dias sentado, a ler e a escrever. Era assim, aos olhos da sua criada, como então se dizia, o Grande Alexandre Herculano. O quanto devemos à sua «preguiça» está por dizer. Aos livros, ao conhecimento, ele dedicou-se por inteiro de uma forma que, hoje, quase ninguém conseguiria entender. 

Fica uma lista de obras suas, digitalizadas, aqui. E uma carta dele, preciosa, que diz tudo sobre as suas opções de vida: 

Alexandre Herculano 


«[...] Tive aos 26 anos uma destas paixões que todos temos naquela idade, mas havia em mim outra mais poderosa, a das ambições literárias. Os meus amores foram com a irmã do Meira, D. Mariana Hermínia. A paixão literária venceu a outra. Tive a coragem de lhe sacrificar esta. Com a minha modesta fortuna não podia fazer filhos e livros ao mesmo tempo. Era necessário ser uma espécie de frade, menos o convento. Falei, pois com franqueza a minha actual mulher, que então era uma cabeça algum tanto romanesca. As mulheres são capazes de actos de abnegação que seriam para nós impossíveis. Já havia rejeitado por minha causa um casamento vantajoso que a família lhe arranjara com um primo, mas à vista das minhas declarações, foi mais longe: aceitou uma posição ambígua, sujeita a comentários e calúnias, sem soltar um queixume, sem a menor quebra durante trinta anos de uma dedicação e amizade ilimitadas. Confesso-lhe que, neste ponto, eu que me parece estar curado de todas as vaidades, ainda tenho vaidade nisto. [...]»

Para ler na integra em ABENCERRAGEM Correspondências #26 - Alexandre Herculano a Joaquim Filipe de Soure, 17/12/2005, consult. a 16/04/2015.



quarta-feira, abril 15, 2015

Romance iniciático e contos de fadas

A opinião de Laure Collet, que já traduziu alguns dos meus livros para francês, sobre  Xerazade:

Fin de la traduction de Shéhérazade: la dernière nuit. de Manuela Gonzaga.

Encore une fois cette sensation à double tranchant: excitation et exaltation du travail fini et prêt à être publié, et saudade immense de ce livre qu'il faut laisser derrière soi.
Roman initiatique et contes de fées tout à la fois, comme son héroïne, il est l'Un et le tous. Chaque chapitre est une histoire, mythique, magique, drôle, ou triste, qui nous transporte ou ramène. Impossible de savoir si on est parti très loin ou resté tranquillement au point de départ. Chaque chapitre est une expérience, une vie, une pièce d'un puzzle; et dans cette image, cette sensation que l'on retient en refermant le livre, le tout est supérieur à la somme des parties. Nous sommes un, et nous sommes tous. Une merveille.


terça-feira, abril 14, 2015

Eu mu-dei tu mudas-te ele mu-dou?

Tanto barulho, e muitas vezes mal fundamentado, tanta quezília, e, já agora, tanta ignorância à volta do Acordo Ortográfico, quando muito pior do que suprimir consoantes mudas, é alterar, pelo costume quase institucionalizado, a lógica, o pilar, o suporte gramatical de uma língua. Sem que ninguém, ou apenas muito poucos, pareçam sofrer com, por exemplo, o abuso generalizado das mutilações verbais.

Nas minhas oficinas de escrita, frequentadas por uma diversidade muito abrangente de pessoas, já apanhei professoras do secundário a partir verbos. Exemplo «chamas-te» por «chamaste»; «vies-te por vieste» e por aí fora, Hoje, no facebook, no mural de um desconhecido, a frase endereçada ao nosso amigo comum, serve de moto a este post:

Não mudas-te nada!

O hífen é pior do que a virgula. Os dois, semeados a eito, estragam tudo. Mas o caso do hífen ainda é mais grave porque mutila, destrói, ofende. Nas aulas de escrita, lembrei-me de um memo para impedir esta armadilha. Na dúvida, ande-se de trás para a frente.

Se escrevermos (e não escrever-mos!) mudas-te, pela mesma lógica temos de escrever mu-dei

Ficaria assim: 

Eu mu-dei
Tu mudas-te
Ele mu-dou. 

E ficaria igualmente horrível. 



quinta-feira, abril 09, 2015

Maria Adelaide no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna

Por um leitor, aluno de mestrado em Ciências Policiais, especialização em Criminologia e Investigaçao Criminal no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPSI), tomeu conhecimento que o meu livro Maria Adelaide Coelho da Cunha - 'Doida não e não!' é estudado na unidade curricular de História da Cultura: o Fenómeno da Criminalidade na Literatura. 




Aproveito para agradecer a António Bebiano, cujo projecto de tese me pareceu interessantíssimo, a sua informação. É sempre uma alegria saber da 'longevidade' e actualidade dos meus livros, este publicado há quase sete anos. 

A mesma obra, e tanto quanto sei, é, de há vários anos a esta parte, igualmente curricular no curso de Psicologia da Universidade Lusófona.

terça-feira, abril 07, 2015

Ermitas da cidade, pastores da noite

Há quase um ano, publiquei este texto no mural do facebook, que hoje entendeu recordar-mo. Esquecera-me por completo mas reconheço-me nestas palavras soltas que editei muito ao de leve. Há procura. À procura.


Precisamos da verdadeira solidão para contemplar a verdade verdadeira, mas só chegamos a ela quando lhe arrancamos todos os véus, logo, quando também nos desnudamos para a abraçar em absoluto desamparo. Fora da literatura (neste domínio nhagiográfica, quase toda ela), não conheço ninguém que a tenha olhado de frente. A Verdade, quero dizer. Conheço quem está eventualmente a caminho. Nestes e noutros tempos. Sem tempo. Podem ser ermitas da cidade, pastores da noite, corpos em ferida e corações a arder. Quase nem daríamos por eles, ou por elas, se não fosse o apelo que irradiam e a insuportável nostalgia que deixam no ar perfumado pela sua passagem. São tão raros, porém, que não estamos habituados a reconhecê-los.

Quando se vão embora, deixam-nos tão sozinhos uns com os outros. 

segunda-feira, abril 06, 2015

Lolita Miausótis

É a história desta gata que entrou nas nossas vidas há menos de um ano. Como me chamava da forma mais sedutora que se possa imaginar, e como era minúscula e graciosa, apesar de adulta, chamei-lhe Lolita. Depois, pelo seu miauuuuu de arrasar corações, juntei-lhe o blue da flor. Ficou Miausótis. 

Lolita Miausótis (foto Marta Gonzaga)

Do mural do meu facebook para aqui:

«Entrou nas nossas vidas com patinhas de veludo e um miau de derreter corações. Chamava-me para que a afagasse. Só. E assim foi, durante uns dias. Quando lhe levei, também, comida, aceitou da primeira vez nitidamente para não fazer a desfeita. Da segunda nem olhou. E à terceira virou-me as costas e foi-se embora muito digna, de rabo no ar, a olhar por cima do ombro e palavra de honra que até fez 'pfffff'' de desdém. Então não se estava mesmo a ver que só queria ser mimada, e pronto? 

Garantido esse ritual diário, ao fim de umas semanas, duas ou três, passou finalmente a aceitar comida das minhas mãos para o pratinho que mantém até hoje. Pouco tempo mais tarde, começou a saltar-nos para o colo e de lá para a nossa vida. Não é nossa. Gatos não são propriedade alheia. Mas tornou-nos dela. Ficámos da tribo. Em casa, já entra e sai. E fica. E dorme. E enrosca-se. Pôs o Timóteo na ordem, e duplicou o tamanho em menos de seis meses, porque já come aqui e come muito bem. Antes, assaltava a comida dos gatos domésticos dos jardins em redor. E pendurava-se nas cordas da roupa da Ana, que vive ao lado, a exigir a sua parte nas refeições, miando desalmadamente. 

Em todo o caso, era muito pequenina, muito frágil e muito arisca. 

Mas agora, os gatos grandes silvestres das redondezas, que a atacavam em refregas brutais - vox populi das janelas - têm um medo dela que se pelam. Ela correu com eles do seu território - que é uma faixa alargada de quintais arborizados e floridos, muros altos e escadas de incêndio. No mais, é uma sedutora adorável. 

A nossa Lolita Miausótis.


Nota: O dono anterior - porque o teve - infertilizou-a felizmente. Mas o senhor morreu, e ela nao gostou da casa e do cuidador que lhe sucedeu. Veio para a rua. Uma rua toda feita de muros altos a esconderem os nossos secretos jardins e quintais floridos. Como diz a Ana «fez uma opçao de vida». Até nos encontrar e ter decidido que íamos ser dela. Outra opção de vida. 




sexta-feira, abril 03, 2015

Opinião - «como um coro de tragédia grega»

Sobre Xerazade - a última noite, partilho , evidentemente autorizada, o texto de opinião de um leitor que me acompanha há vários livros. Agradeço profundamente a Manuel Carlos Marques Pinto o entusiasmo, a grande generosidade e o trabalho a que se deu, para comentar tão aprofundadamente a obra. MG. 


Europa e o Touro



Leimotiv

Não fiquei com quaisquer dúvidas, após a leitura entusiasta de “Xerazade”, que estamos perante um “Leimotiv” de ardor humano (talvez paixão), com tudo de grandioso e sublime que lhe é intrínseco, mas, igualmente, misterioso e sedutor. A paixão entre esses dois amantes, dois amigos, tornou-se no centro da narrativa, do romance funcionando como “um coro de tragédia grega, sublinhando a acção e sugerindo interpretações e propósitos onde as personagens os não encontram.”

Na realidade, julgo ter percebido bem este jogo de xadrez que aqui se vai desenrolando e que, no fundo, é a vida, onde muitas vezes somos peões ou outras vezes rainhas e reis montados em cavalos brancos, mesmo que sejamos apanhados em xeque-mate nas voltas que o jogo dessa vida nos apresenta.

Não foi, com toda a certeza por acaso, que o romance tem o nome da princesa das Mil Uma Noites, Xerazade, pois julgo entender que é uma homenagem muito sincera a todas as mulheres que sempre desejaram e desejam serem felizes e independentes. Haverá mesmo um certo feminismo, mas muito delicado e discreto (sem necessidade de queimar objectos…) que atravessa, aliás, todo o romance."

Começo por comentar como cruza tão bem, com palavras tão sublimes o que paira além de nós, ou até ainda está entre nós, da mitologia (da pré-clássica ou clássica) que nos deslumbra, dos deuses mais cativantes que nos cercam e que , mesmo involuntariamente nos conduzem, por vezes, mais do que as amarras dos factos históricos! Como são bonitas as lendas, os mitos e como ultrapassam, em tantas ocasiões, em densidade interior, a própria História? “Dos deuses vem todo o engenho que dá as qualidades aos mortais. Eles nos criam artistas, fortes de braços , ou eloquentes”, como diziam os gregos, na procura incessante da virtude, excelência ou conhecimento. Como teve a lucidez de valorizar esse nosso passado mítico tão rico (com exemplos tão variados que enriquecem substancialmente toda a trama narrativa) sabendo que temos sangue de tantos cruzamentos e que bebemos directamente de tantas heranças culturais!

Orfeu trazendo Euridice dos infernos


Gostei, igualmente, da forma como integra o tempo (que por vezes pode ser algoz da fantasia) que liga todos os episódios nesta sucessão de quadros vivos ou sonhados, mas nunca tendo deixado que o próprio tempo enchesse de amargos e desenganos o percurso da existência/vivência daqueles dois seres. Corre devagar, corre ao sabor de um presente e de um passado, mas corre… como um fluir de um rio para o mar! “Nada é permanente, salvo a mudança”( Heráclito).

Mostra ainda que a vida só é bem vivida torneando o sofrimento, mesmo que , por vezes, seja bem complicado alterar o tal destino que só os deuses do Olimpo conseguem escapar! Por isso, os sonhos e as memórias que se vão expressando em forma de diálogo dos seres humanos protagonistas da narrativa, assentam em raízes bem ancestrais, mas tornam-na lógica e encadeada com a passagem até pelo mais trivial e mais terreno: “Sorris. É um sorriso um pouco triste, mas mesmo assim é um sorriso e é tão bom levar essa memória comigo” (pág.69); ou quando se tem um coração que sofre, lamenta, mas compreende sem críticas a fraqueza humana na hora derradeira (”na vizinhança da morte pediu ao amante que lhe cortasse o cabelo bem curto, risca ao lado, à homem”(…) (pág.70).

E, no desenvolvimento deste cruzamento de mitos e realidades ali está com uma marca muito subtil a referência à sua África nas imagens das madrugadas quando os javalis “vêm beber ao lago “( pág.64) ou  “(…) depois, quando morremos, todos desejaríamos ter uma árvore africana , a mais maternal de todas as árvores , o baobá, por túmulo(…) (pág.79) , provando bem que o cordão umbilical que há muito se transformou em saudade continua presente, tecendo um corolário intenso de nostalgias inesquecíveis!

Depois é todo um romance, onde estão bem patentes tantas referências ao nosso imaginário de um passado tão rico, mas também de tantos enigmas , venham eles através da História , dos mitos, ou das nossas memórias : “O rei vai nu”, Ulisses” Inana e Ereshkigal, A História começa na Suméria”, “Dos amores de Afrodite por Marte”, como a sugerir toda a simbologia (”Que verdades se ocultam no mito?”pág.21) que daí decorre , onde se entrelaçam paixão, mistério, fantasia, ódio, presentes , tantas vezes, entre os terrenos! Ou “Da riqueza dos livros”, porque vivem connosco… Mas também a música, tão enaltecida em páginas, todas elas, por sua vez tão musicais, fica a pairar nos nossos sentidos, com uma vibração muito especial:“a música mora em tudo e em todos. E está presente até no silêncio. E, como é sublime esse remate: “É a assinatura da vida” (pág.94); só é pena agora acrescento eu que haja uns tantos que não saibam assinar.

E da vida passada então fica esse belo conto “O Flautista de Hamelin”, conto folclórico, reescrito pela primeira vez pelos Irmãos Grimm e que narra um desastre incomum acontecido na cidade de Hamelin, na Alemanha, em 26 de junho de 1284, e que encantou tantas crianças quando os avós ainda tinham tempo e sabedoria para encantar os netos! Bela e sentida homenagem! Autêntico vale mágico!

E as histórias, as evocações, os diálogos sucedem-se em quadros que vão do onírico ao real, com base também numa espécie de improvisação quase oral e quase homérica, de modo que explica o conhecimento de pessoas e coisas que, quase de  certeza,  já  existiam nas memórias passadas. Por outro lado, consegue, mesmo tratando-se de um romance, não confundir a particularidade do que vai descrevendo seja na História, na lenda ou no mito com o essencial da narrativa, dando assim veracidade e vivacidade com o que cruza na sua escrita.

E surgem as admirações por Creta, “Creta é um lugar de infância e voltar à ilha é uma ideia muito tentadora”(pág.105), pela sumptuosidade de Cnossos , como num apelo à História , mas sem se enredar  na sua trama mais complexa.

Ou o mistério da Torre de Babel (págs.130 e 131) e ambição humana desmedida que nunca mais teve fim segundo o Antigo Testamento (Gênesis 11,1-9), construída na Babilônia pelos descendentes de Noé, com a intenção de eternizar seus nomes. A decisão era fazê-la tão alta que alcançasse o céu. Esta soberba que continua tão presente na nossa sociedade provocou a ira de Deus que, para castigá-los, confundiu-lhes as línguas e os espalhou por toda a Terra.
E depois com o mesmo entusiasmo e com a mesma cadência de introduzir mais lendas e mitos no corpo do romance, “somos deuses” (pág.141), aí estão os bárbaros (págs.136 e 137) e a postura altiva dos clássicos, neste caso, Roma a não entenderem a mão civilizacional que trouxeram e não apenas o nefasto ; eram aqueles que falavam bar-bar-bar.

No capítulo “O Regresso” (págs. 142 a 148) como  revela muito bem a intensidade do diálogo , mas com a simplicidade de uma  abertura ao bom entendimento , afinal tão simples, mas, por vezes tão complicado: “Enfim, também só as crianças, os loucos ou os miraculosos se conseguem abstrair tão absolutamente do mundo em redor que não pensam na transitoriedade dos milagres, esquecendo que a vida continua com o seu pequeno cortejo de misérias” (pág.143).

E que bom foi recordar Hans Christian Andersen esse fabuloso mágico da palavra, filho de gente bem humilde, mas que com a sua nobre escrita foi um autêntico aristocrata e cativou tantas gerações de meninas e meninos! E não tenha dúvidas como é bom voltar à infância, tenha ela acontecido no frio, no calor, na montanha ou na cidade! Os nossos partiram, mas os nossos ficaram; estão ali, estão aqui como disse Saint Exupéry (outro mágico da palavra eterna): “Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”.
E então os Anjinhos (pág.156) como foram eles importantes nas nossas vidas!

Com os “Portais” ( págs.165 a 172) encontro aqui um texto muito rico psicologicamente (sobretudo na descrição daquela protagonista) com afirmações muito realistas que ficarão na memória de todos aqueles que irão ler Xerazade: “A mulher: loura, olhos cor de avelã, talvez excessivamente magra, branca, queixo duro, pele de camélia, era de uma vivacidade que enchia um estádio de futebol vazio, ou transformava um velório numa festa.
Era daquelas pessoas que só, só com a sua presença , acendia as luzes de Natal , sem ser preciso liga-las  à corrente, e que com a sua inconcebível energia, era capaz de organizar  em menos de duas horas  e na mais soturna das casas uma festa de arromba , com jantar de vários pratos, música adequada e decoração a preceito” (págs.168 e 169).

Há também grande sensualidade, mas também sensibilidade ao falar dos sentimentos humanos que podem ser nobres, mas também obscuros ou misteriosos.

Alguma vez chegamos a conhecer alguém?” (pág.172).

No capítulo “A Realidade” (a partir da pág.173) enquadra muito bem o que é a vida, e o que é a ilusão a que muitas vezes ela nos conduz; somos realmente, em tantas ocasiões, cegos de tudo, mesmo que tenhamos todos os sentidos a funcionarem. “Então todos os cegos começaram a discutir, tentando prevalecer a sua verdade , e não chegaram a acordo” ( pág.174). Por isso, o que é real, muitas vezes nos parece irreal e vice-versa: “ Há histórias a emergir à nossa volta, aproveitando a escuridão e a tranquilidade para viverem as suas existências bidimensionais. Simulacros de vidas? Variações em torno das vidas que nós próprios deixámos para trás? Memórias perdidas que não se resignam ao olvido?” (pág.176).

E ao abordar uma página dedicada à literatura infantil (pág.176) com a história da Princesa Magalona, soube avivar , mais uma vez, os sonhos de todos nós  e revolver saudades , mesmo que sobressaiam algumas amarguras  nesse sonhar acordado. E ao passar para as “aventuras e hilariantes de Dom Roberto, do Diabo, o Barbeiro, o Padre, o Polícia, forcados, bandarilheiros, o Barbeiro, o Padre, o Polícia, os forcados, bandarilheiros e touros, mais a Princesa Magalona, a Imperatriz Porcina e a Donzela Teodora, atinge em cheio a juventude de muitos de nós. Inolvidáveis momentos sempre presentes nas nossas recordações! Acho que me ainda escuto a rir, rodeado de olhares tão carinhosos e tão cúmplices. Afinal, onde estão? Por mim, continuo lá, porque a realidade  é mesmo “aquilo em que acreditamos”(pág.184).

Finalmente leio o capítulo “Não Me Deixes” (a partir da pág.186). E o que leio e medito? Percebo que quer fechar o círculo maiêutico como começou, para não se escapar da razão do seu romance: A procura incessante que o seu interlocutor estivesse sempre presente em toda a narrativa, tornando-se ele, igualmente, um porta-voz das suas histórias/mitos/mitos/histórias tivessem elas as formas que tivessem mas também das suas angústias, dos seus sonhos, das suas memórias, do seu acerto com uns salpicos autobiográficos, de um certo erotismo como ritual pacificador, do alcance máximo das relações homem /mulher/mulher/homem, umas vezes conseguidas, outras nem por isso, da lógica do mito O mito é o nada que é tudo”( Fernando Pessoa) e da forma melhor do amor, fonte perene da humanidade.

Assim, não pretendendo com estas palavras um pouco soltas e nunca exaustivas, assumir qualquer tipo de crítica literária e muito menos de recensão crítica (para as quais nem sequer estou habilitado), não poderei de expressar aqui os meus mais sinceros parabéns por esta obra tão bem conseguida: é um romance muito bem estruturado que facilita a leitura e é revelador de grande imaginação, fantasia, sensibilidade, cultura e um sentido estético muito apurado.
Lhe auguro, por isso, triunfante caminho…
Com estima e consideração,

Manuel Carlos Marques Pinto
 Em 23/03/2015
Texto escrito de acordo com a antiga ortografia